sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A Grande Holarquia do Ser - Ken Wilber

Como já disse, todas as grandes tradições mundiais são basicamente variações da filosofia perene, da Grande Holarquia do Ser. Em seu maravilhoso livro Forgotten Truth, Huston Smith resumiu as maiores religiões do mundo em uma sentença: “A hierarquia do ser e do conhecer.” Chõgyam Trungpa Rinpoche salientou, em Shambhala: The Sacred Path of the Warrior, que a idéia mais essencial e abrangente, que permeia todas as filosofias do Oriente, da Índia até o Tibete e a China, e que está por trás de tudo, do xintoísmo ao taoísmo, é a “hierarquia terra, ser humano, céu”, que ele também aponta como equivalente a “corpo, mente, espírito”. E Coomaraswamy afirmou que as grandes religiões do mundo, sem exceção, “em graus diferentes, representam a hierarquia de tipos ou níveis da consciência, es­tendendo-se desde o animal até a divindade, e de acordo com a qual o mesmo indivíduo pode funcionar em ocasiões diversas”.

O que nos leva ao maior paradoxo da filosofia perene. Já vimos que as tradi­ções de sabedoria participam da noção de que a realidade se manifesta em níveis ou dimensões, com cada dimensão mais elevada sendo mais inclusiva e, portanto, mais “próxima” da totalidade absoluta da Divindade, ou Espírito. Nesse sentido, o Espírito é o cume do ser, o degrau mais alto da escada da evolução. Mas também é verdade que o Espírito é a madeira da qual toda a escada e todos os degraus são feitos. O Espírito é o sujeito, o ser, a essência de tudo o que existe.

O primeiro aspecto, o aspecto superior, é a natureza transcendental do Espírito — ela sobrepassa de longe qualquer coisa “mundana”, ou criatural, ou finita. A terra inteira (ou mesmo o universo) poderia ser destruído, e o Espírito permanece­ria. O segundo aspecto, o aspecto madeira, é a natureza imanente do Espírito — o Espírito está igual e totalmente presente em todas as coisas e acontecimentos ma­nifestos, na natureza, na cultura, no céu e na terra, sem parcialidade. Deste ângu­lo, nenhum fenômeno está mais perto do Espírito do que outro, pois todos são igualmente “feitos” de Espírito. Deste modo, o Espírito é ambos, tanto a meta de todo desenvolvimento e evolução, quanto o fundamento da seqüência inteira, tão presente no início quanto no fim. O Espírito é anterior a este mundo, mas não outro em relação a este mundo.

Não levar esses paradoxos em consideração resultou, na História, em algumas visões bem distorcidas (e politicamente perigosas) do Espírito. Tradicionalmente, as religiões patriarcais tenderam a super enfatizar a natureza transcendental do Espírito, condenando assim terra, natureza, corpo e mulher a um status inferior. Antes disso, as religiões matriarcais tinham a tendência de enfatizar apenas a na­tureza imanente do Espírito, e as visões de mundo panteístas resultantes iguala­ram a Terra finita e criada ao Espírito infinito e incriado. Você é livre para se identificar com uma Terra finita e limitada; você não é livre para chamá-la de infinita e ilimitada.

Tanto a religião patriarcal quanto a matriarcal, ambas visões distorcidas do Espírito, tiveram conseqüências históricas bem terríveis, desde sacrifícios huma­nos brutais em larga escala, em homenagem à fertilidade da Deusa da terra, até a guerra total pelo Deus Pai. Mas, em meio a essas distorções exteriores, a filosofia perene (o âmago esotérico ou interior das religiões da sabedoria) sempre evitou a dualidade — Céu ou Terra, masculino ou feminino, infinito ou finito, ascético ou celebratório — e se concentrou, em vez disso, na união desses elementos, ou na sua integração (não-dualismo). E, na verdade, essa união entre Céu e Terra, mas­culino e feminino, infinito e finito, ascensão e queda, sabedoria e compaixão fica explícita nos ensinamentos “tântricos” de diversas tradições de sabedoria, desde o neoplatonismo, no Ocidente, até o vajrayana, no Oriente. E é a esse âmago não dualista das tradições de sabedoria que o termo “filosofia perene” mais se aplica.

A questão, assim, é que, se vamos tentar pensar no Espírito em termos men­tais (o que implica necessariamente algumas dificuldades), então pelo menos deveríamos nos lembrar desse paradoxo transcendente/imanente. Paradoxo é sim­plesmente a maneira como a não-dualidade aparece no nível mental. O Espírito em si não é paradoxal; estritamente falando, ele não é caracterizável, de modo algum.

Isso se aplica duplamente na hierarquia (holarquia). Afirmamos que, quando o Espírito transcendental se manifesta, ele o faz em estágios, ou níveis — a Grande Holarquia do Ser. Mas não estou querendo dizer que o Espírito em si, ou a realida­de, é hierárquico. O Espírito absoluto, ou a realidade, não é hierárquico. Ele não é de modo algum qualificável em termos mentais (em termos de hólons inferiores) — é shunyata, ou nirguna, ou apofático —, é inqualificável, sem um único traço de características específicas e limitantes. Mas manifesta-se em degraus, em cama­das, dimensões, invólucros, níveis ou graus — o termo que se preferir — e isso é holarquia. No vedanta, são os koshas, os invólucros ou camadas que cobrem Brahma; no budismo, são as oito vijnanas, os oito níveis da percepção, cada um dos quais sendo um degrau abaixo ou uma versão mais restrita da dimensão acima; na Caba­la são as sefirot, e assim por diante.

A questão toda é que esses são níveis do mundo manifesto, de maya. Quando maya não é reconhecida como um ato do Divino, ela não passa de ilusão. Hierar­quia é ilusão. Há níveis de ilusão, não de realidade. Mas de acordo com as tradições, é exatamente (e somente) compreendendo a natureza hierárquica do samsara que podemos, na verdade, sair dele, subindo por uma escada que só poderá ser descartada depois de servir a seu extraordinário propósito.

Podemos examinar agora alguns dos verdadeiros níveis ou esferas da holarquia, do Grande Ninho do Ser, como aparecem nas três maiores tradições de sabedoria: judeu-cristã-muçulmana, budismo e hinduísmo, ainda que pudéssemos usar qual­quer tradição madura.

(Não se esqueça de que esses níveis são do quadrante Superior Esquerdo, os níveis do espectro da consciência em si. Nos capítulos que seguem, veremos como esse espectro se comporta também nos outros quadrantes, o cultural, o social e o comportamental — da antropologia à filosofia, à arte e à literatura. Mas, por ago­ra, vamos nos concentrar no espectro da consciência como aparece no ser huma­no individual, o quadrante Superior Esquerdo.)

Os termos cristãos são os mais fáceis, porque a maioria de nós já os conhece: matéria, corpo, mente, alma, espírito. Matéria significa o universo físico, como aparece em nossos próprios corpos físicos (isto é, aqueles aspectos de nossa exis­tência cobertos pelas leis da física); e tudo o mais que queremos dizer com a pala­vra “matéria” significa, neste caso, a dimensão com a menor quantidade de cons­ciência (alguns diriam sem consciência; a escolha é sua). Corpo, neste caso, signi­fica o corpo emocional, o corpo “animal”, sexo, fome, energia vital e assim por diante (isto é, os aspectos da existência estudados pela biologia). Mente é a mente racional, racionalizante, lingüística e imaginativa (estudada pela psicologia). Alma é a mente mais elevada ou sutil, a mente arquetípica, a mente intuitiva, e a essên­cia ou indestrutibilidade de nosso ser (estudada pela teologia). E Espírito é o topo transcendental do nosso ser, a nossa Divindade (estudada pelo misticismo contemplativo).

De acordo com o hinduísmo vedanta, cada pessoa é composta de cinco “invó­lucros”, ou níveis, ou esferas do ser (os koshas), muitas vezes comparados com uma cebola, de modo que, à medida em que tiramos as camadas externas, encontramos cada vez mais a essência. A mais baixa (ou mais exterior) é chamada de annamaya­kosha, que significa “o invólucro feito de alimento”. Essa é a esfera física. A seguir vem a pranamayakosha, o invólucro feito de prana. Prana significa força vital, bioenergia, élan vital, libido, energia emocional-sexual em geral — a esfera do corpo emocional (termo que preferimos usar), A seguir é o manomayakosha, os invólucros de manas, ou mente — racional, abstrata, lingüística. Para além desta, está o vijnamayakosha, o invólucro da intuição, a mente superior, a mente sutil. Finalmente, temos o anandamayakosha, o invólucro feito de ananda, ou o êxtase espiritual e transcendental.

Ademais — e isto é importante — o vedanta agrupa esses quatro invólucros em três setores mais importantes: bruto, sutil e causal. O setor bruto está correlacionado com o nível mais baixo na holarquia, o corpo físico (annamayakosha). O setor sutil está correlacionado com os três níveis intermediários: o corpo emo­cional-sexual (pranamayakosha), a mente (manomayakosha) e a mente mais eleva­da ou sutil (vjnanamayakosha). E o causal está correlacionado com o nível mais ele­vado, o anandamayakosha, ou espírito arquetípico, que é considerado, algumas vezes, não-manifesto, ou sem forma. Além disso, o vedanta relaciona esses três setores maiores do ser com os três maiores estados da consciência: a vigília, o sonho e o sono profundo sem sonhos. Para além de todos esses três estados, está o Espírito absolu­to, algumas vezes chamado turiya, “o quarto’, porque está além dos três estados de manifestação (e os inclui); está além do bruto, do sutil e do causal (e assim os integra).1

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(1) O sistema Vedanta (e seu primo distante, o Vajrayana) contém um raro modelo geral das estruturas e dos estados da consciência, o que explicarei mais tecnicamente da seguinte maneira;

Os cinco invólucros são invólucros da consciência, ou mente, em seu sentido mais amplo — consciência física, consciência emocional, consciência conceptual, consciência intuitiva, consciência espiritual. E a isso que me refiro como estruturas básicas da cons­ciência, as dimensões e níveis do Lado Esquerdo (superior) da psique humana.

Mas o Vedanta percebeu que não existe corpo sem mente, nem consciência sem supor­te. Desse modo, cada mente é suportada por um corpo — o corpo grosseiro (suportando a mente inferior), o corpo sutil (sustentando as três mentes “intermediárias”), e o corpo causal (suportando a mente superior, ou não-manifesta). Esses corpos são apenas o supor­te material para o processo “consciente” — em outras palavras, eles representam as dimensões do Lado Direito da psique humana. (No Vajrayana, e no Tantra em geral, as três mentes estão suportadas por três “ventos”, ou correntes de energia, também referidas como grosseira, sutil e verdadeiramente sutil.)

Assim, podemos representar precisamente o ponto de vista do Vedanta/Vajrayana fa­lando do corpo-mente grosseiro, do corpo-mente sutil e do corpo-mente causal, cobrindo o espectro tanto no domínio do Lado Esquerdo quanto no do Lado Direito, com uma importante condição: Deus está sempre dos dois lados (isto é, esses domínios são inseparáveis, a mente grosseira sempre ocorre junto com o corpo grosseiro, a mente sutil como corpo sutil, e assim por diante).

Além disso, de acordo com o Vedanta/Vajrayana, essas estruturas básicas — os níveis do corpo-mente, grosseiro, sutil e causal, que são invólucros permanentes, ou níveis à disposição dos seres humanos — têm correlação com os estados temporários da consciên­cia (não estruturas permanentes, mas estados temporários), do seguinte modo: vivencia-se o corpo-mente grosseiro principalmente no estado de vigília, o corpo-mente sutil no estado de sonho, e o corpo-mente causal no estado de sono profundo sem sonhos (o não-manifesto). O que interessa aqui é que essas estruturas e estados não são simplesmente a mesma coisa (a falta de compreensão dessa distinção elementar tem prejudicado muitas teorias transpessoais).

Em diversos estados meditativos, os níveis superiores do corpo-mente são levados à percepção, primeiro como estados temporários, e depois, com o tempo, como estruturas permanentes. O resultado final dessa conversão de estados em características é moksha ou liberação radical — uma liberdade radical de toda manifestação, como toda manifestação. Em outras palavras, o reconhecimento radical daquele Espírito que é tanto a meta quanto o fundamento de todos os estados e de todas as estruturas (turyia, a “quarta”, depois do corpo-mente grosseiro, sutil e causal — em outras palavras, o Vazio, ou Taleza, da demonstração inteira, que não é uma mudança de estado, mas a condição sem estado de todos os estados).

Esse é um modelo extraordinário da consciência humana, o mais abrangente de todas as tradições (incorporando estruturas, estados e níveis tanto do corpo/Direito quanto da mente/Esquerdo). O que lhe falta, na minha opinião, são os detalhes de desenvolvimento (uma abordagem especializada nesse aspecto, feita pelo Ocidente moderno). Com uma sensibilidade mais ocidental de desenvolvimento, podemos adicionar uma compreensão das estruturas transitórias associadas com cada uma dessas estruturas básicas. O resultado dessa síntese seria um apanhado geral genuinamente Ocidente/Oriente, Apresento um modelo assim do capítulo 6 ao 10, e debato a razão por que essas adições são necessárias para preencher o modelo Vedanta/Vajrayana.

Finalmente, o que falta no modelo Vedanta/Vajrayana — na verdade, o que está em geral faltando na filosofia perene — é uma compreensão de como o Inferior Esquerdo (cultural) e o Inferior Direito (social) influenciam de um modo profundo, e muitas vezes governam, a consciência e o comportamento individuais que eles, de outro modo, com­preendem tão bem. A Grande Corrente, por exemplo, parece diferente — está diferente — nos mundos mítico, mágico e mental. Isso é mais uma maneira de dizer que os estudos integrais devem ser não apenas “todos os níveis”, mas “todos os níveis, todos os quadrantes”. Os estudos de Gebser (I.E) e Marx (I.D.), por exemplo, não fazem sentido nenhum para um teórico da Grande Corrente, e, na verdade, nem têm lugar na visão tradicional, uma visão que, apenas nisso, é bastante inadequada.

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A versão vedanta dos cinco invólucros, por sua vez, é quase idêntica à versão judeu-cristã-muçulmana de matéria, corpo, mente, alma e espírito, desde que en­tendamos “alma” não apenas como um eu mais elevado, ou uma identidade mais elevada, mas como uma mente e uma cognição mais elevadas e mais sutis. E alma também significa, em todas as tradições místicas superiores, um “nó”, ou “contra­ção” (o que os hindus e budistas chamam de ahamkara), que precisa ser desatado e dissolvido antes que a alma possa transcender a si mesma, morrer para si mesma, e assim encontrar uma identidade suprema com, e como, o Espírito absoluto (como disse Cristo: “Quem não odeia a própria vida não pode ser meu discípulo.”).

“Alma”, então, é tanto o nível mais elevado que podemos atingir no cresci­mento individual quanto a barreira final, o nó final, para completar a iluminação ou suprema identidade, pela simples razão de que, como observador transcendental, fica fora de tudo o que observa. Uma vez que atingimos a posição de observador, a própria alma ou observador se dissolve, e permanece apenas o ato de percepção não-dualista, percepção que não olha para os objetos, mas é completamente una com todos os objetos (o zen diz: “É como provar o céu.”). A brecha entre sujeito e objeto vem abaixo, e a alma transcende a si mesma ou se dissolve, e surge a pura percepção não-dualista ou espiritual — que é bem simples, bem óbvia, bem clara. Você se dá conta de que seu ser intrínseco é vasto e aberto, vazio e claro, e que tudo o que surge em qualquer lugar surge dentro de você, como espírito intrínseco, espontaneamente.

O modelo psicológico central do budismo mahayana são as oito vijnanas, os oito níveis da consciência. Os primeiros cinco são os cinco sentidos. O próximo é o manovijnana, a mente que opera na experiência sensorial. Depois vem o manas, que significa tanto a mente mais elevada quanto o centro da ilusão do eu separa­do. E o manas que olha para o alayavijnana e o confunde com um eu separado, ou alma substancial, segundo a nossa definição. E, além desses oito níveis, tanto como fonte quanto como fundamento, está a pura alaya, ou puro Espírito vazio.

Não estou querendo minimizar algumas das diferenças bastante reais entre essas tradições. Estou apenas salientando que elas compartilham algumas seme­lhanças estruturais profundas, que atestam, cora eloqüência, a natureza genuina­mente universal de muitas de suas percepções.

E assim podemos ter um final feliz: depois de ter descarrilhado temporariamen­te, durante o século XIX, devido a diversos reducionismos materialistas (do materialismo científico ao behaviorismo e ao positivismo), a Grande Corrente do Ser, a Grande Holarquia do Ser, está fazendo uma reestréia extraordinária. Aquele descarrilamento temporário — tentativa de reduzir a holarquia do ser ao seu nível mais baixo, a matéria — foi particularmente irritante na psicologia, que primeiro perdeu o espírito, depois perdeu a alma, depois a mente, e ficou reduzida apenas ao estudo do comportamento empírico, ou dos impulsos corporais, uma restrição que, em qualquer outra época ou lugar, seria uma definição precisa de insanidade.

Mas agora a holarquia evolutiva — o estudo holístico do desenvolvimento e da auto-organização de campos dentro de campos dentro de campos — é, mais uma vez, um tema dominante em muitas disciplinas científicas e comportamentais (como veremos), ainda que seja chamada por muitos nomes (a “enteléquia” de Aristóteles, para dar pelo menos um exemplo, é agora conhecida como “campos morfogenéticos” e “sistemas auto-organizados”). Isso não quer dizer que as ver­sões modernas da Grande Holarquia não ofereçam novas idéias, porque elas ofere­cem, particularmente quando se trata do desenvolvimento evolutivo da própria Grande Corrente. Cada vislumbre da Grande Holarquia é adequado; cada vislum­bre que avance um passo à frente é mais adequado...

Mas os aspectos essenciais são inequívocos. Ludwig von Bertalanffy, o funda­dor da Teoria Geral de Sistemas, resumiu perfeitamente: “A realidade, na concep­ção moderna, aparece como uma tremenda ordem hierárquica de entidades orga­nizadas, levando, numa superposição de muitos níveis, do sistema físico e químico ao sistema biológico e sociológico. Essa estrutura e combinação hierárquica em sistemas de ordens cada vez mais elevadas é característica da realidade como um todo, e de importância fundamental, especialmente na biologia, na psicologia e na sociologia.”

Assim, por exemplo, na psicologia moderna, a holarquia é o paradigma estrutural e de processo dominante, atravessando o verdadeiro (e muitas vezes bem dife­rente) conteúdo das diversas escolas. Cada escola de psicologia do desenvolvi­mento reconhece alguma versão de hierarquia, ou uma série de discretos (mas contínuos) estágios irreversíveis de crescimento e desenvolvimento. Isso inclui os freudianos, os junguianos, os piagetianos, Lawrence Kohlberg, Carol Gilligan, e o behaviorismo cognitivo. Maslow, representando tanto a psicologia humanista quan­to a transpessoal, colocou a “hierarquia das necessidades” no centro do seu siste­ma — só para mencionar alguns.

De Rupert Sheldrake e da sua “hierarquia de campos morfogenéticos aninha­dos” à “hierarquia das qualidades emergentes”, de Karl Popper, e ao “modelo eco­lógico da realidade”, de Birch e Cobb, baseado no “valor hierárquico”; do trabalho que preparou as bases dos sistemas auto-poiéticos, de Francisco Varela (“parece ser uma reflexão geral das riquezas dos sistemas naturais produzir uma hierarquia de níveis”), à pesquisa do cérebro de Roger Sperry, de sir John Eccles e de Wilder Penfield (“uma hierarquia de emergentes não-redutíveis”) e à teoria da crítica social de Jürgen Habermas (“uma hierarquia de capacidade comunicativa”) — a Grande Corrente está de volta.

E a única razão pela qual ninguém percebe isso é porque ela se esconde sob diversos nomes diferentes.

Mas não importa; percebida ou não, ela já está a caminho. E a melhor coisa a respeito desse retorno é que agora a teoria moderna pode fazer uma religação com suas ricas raízes da filosofia perene, não apenas com Platão, Aristóteles, Plotino, Maimônides, Hegel e Teresa no Ocidente, mas também com Shankara, Padmasam­bhava, Chih-i, Fa-tsang, Abinavagupta e lady Tsogyal, no Oriente — tudo isso tornando-se possível devido ao fato de que muitos aspectos da filosofia perene realmente parecem perenes — ou essencialmente universais, onde quer que apa­reçam — cruzando assim tanto épocas quanto culturas, apontando direto ao cora­ção, à alma e ao espírito da família humana (na verdade, todos os seres sencientes como tal).

Na realidade, só há uma coisa a fazer, um item fundamental na agenda do retorno. Ainda que seja verdade que a holarquia evolutiva, como mencionei, é um dos paradigmas unificantes do pensamento moderno, da física à biologia, à psico­logia e à sociologia (ver, por exemplo, Laszlo, Jantsch, Habermas, Lenski, Dennett), mesmo assim, a maioria das escolas ortodoxas de inquirição admite apenas a existência da matéria, do corpo e da mente.2 As dimensões mais elevadas da alma e do espírito ainda não atingiram essa posição. Pode-se dizer que o Ocidente moderno só reconhece três quintos da Grande Holarquia do Ser. A ordem do dia, então, é reintroduzir os outros dois quintos (a alma e o espírito).

Uma vez que reconheçamos e respeitemos todos os níveis e dimensões da Grande Corrente, reconheceremos, simultaneamente, todas as modalidades corresponden­tes de conhecimento — não apenas o olho da carne, que desvenda o mundo físico e sensorial, nem só o olho da mente, que desvenda o mundo lingüístico e simbóli­co, mas também o olho da contemplação, que desvenda a alma e o espírito. (Retornaremos a esse importante tópico no Capítulo 3.)

A ordem do dia, então, é a seguinte: vamos dar o último passo, e reintroduzir o olho da contemplação, que, como método científico e repetível, desvenda alma e espírito. E essa visão integral é, eu afirmo, o retomo final, o reentrelaçamento de nossa alma moderna com a alma da própria humanidade — o verdadeiro significa­do do multiculturalismo — de modo que, levantados em ombros de gigantes, pos­samos transcender mas incluir, o que sempre significa respeitar, sua presença re­corrente. Assim, a unificação da sabedoria antiga com o conhecimento moderno é o toque da trombeta da visão integral, um farol no deserto pós-moderno.

FONTE: Excerto do Capítulo I (O Espectro da Consciência) do livro “O Olho do Espírito”, de Ken Wilber, filósofo norte-americano criador da Filosofia Integral, publicado no Brasil pela Editora Cultrix, em 2001. Neste livro, o autor busca através de uma abordagem integrativa tecer os vários fragmentos do conhecimento humano numa coerente e inspiradora visão de mundo .

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