sexta-feira, 14 de maio de 2010

Uma Espiritualidade que Transforma - Ken Wilber

Hal Blacker, editor consultivo de What is Enlightenment? (O que é Iluminação?), descreveu o tema desta edição especial da revista do seguinte modo (embora repita afirmações feitas em outras partes desta edição, vale a pena apresentar a citação completa simplesmente pela sua eloquência, franqueza e indiscutível bom senso):

Tencionamos explorar uma questão sensível, mas que precisa ser tratada: a superficialidade que permeia a maior parte do discurso e da exploração espirituais atualmente no Ocidente, e, em particular, nos Estados Unidos. Freqüentemente, ao traduzir-se doutrinas místicas do Oriente (e de outros lugares) para o idioma americano, sua profundidade é aplainada, sua exigência radical é diluída e seu potencial para transformação revolucionária é abrandado. Uma vez que as palavras dos ensinamentos são quase sempre as mesmas, isto se dá de maneira sutil. Através de uma aparente prestidigitação envolvendo, talvez, seu contexto e, consequentemente, seu significado, a mensagem das maiores doutrinas, muitas vezes, parece transmutar-se do crepitar do fogo da libertação para algo que mais se assemelha ao borbulhar calmante de um banho quente de banheira. Embora haja exceções, as implicações radicais dos grandes ensinamentos são, desse modo, freqüentemente perdidas. Desejamos investigar esta diluição da espiritualidade no Ocidente e analisar suas causas e conseqüências.

Baseado nesta declaração, gostaria de ressaltar seus pontos básicos e comentá-los da melhor maneira que puder, porque, considerados em conjunto, eles realçam o verdadeiro âmago da crise americana de espiritualidade.

Interpretação versus Transformação

Numa série de livros (e.g., Um Deus Social, Up from Eden e The Eye of Spirit) tento mostrar que a religião sempre cumpriu duas funções muito importantes, mas muito diferentes. Em primeiro lugar, ela age de modo a criar significado para o self [1] alienado [2]: oferece mitos, histórias, contos, narrativas, rituais e revivescências que, em conjunto, ajudam o self a entender e suportar as pedras e flechas do destino implacável. Normalmente, esta função da religião não necessariamente altera o nível de consciência da pessoa; não provoca transformação radical. Nem provoca, tampouco, uma libertação definitiva do self alienado. Ao contrário, ela consola o self, fortalece o self, defende o self, promove o self. À medida que o self alienado acredita nos mitos, executa os rituais, balbucia as orações ou aceita os dogmas, então crê fervorosamente que será “salvo” – ainda nesta vida, pela glória da salvação de Deus ou da proteção da Deusa, ou na vida após a morte, quando ser-lhe-á assegurada felicidade eterna.

Mas, em segundo lugar, a religião cumpre – usualmente para uma muito, mas muito pequena minoria – uma função de transformação radical e de libertação. Esta função da religião não fortalece o self alienado; ao contrário, despedaça-o completamente – não consolação mas devastação, não entrincheiramento mas esvaziamento, não complacência mas explosão, não conforto mas revolução – em síntese, não fortalecimento convencional da consciência mas transmutação e transformação radicais nas profundezas da própria consciência.

Há algumas diferentes maneiras para explicar essas duas importantes funções da religião. A primeira função – criação de significado para o self – é um tipo de movimento horizontal; a segunda função – transcendência do self – é um tipo de movimento vertical (para cima ou para o fundo, dependendo da sua metáfora). Denominei a primeira interpretação; a segunda, transformação.

A interpretação simplesmente dá ao self uma nova maneira para pensar ou sentir a realidade. O self passa a ter uma nova crença – talvez holística ao invés de atomística, talvez perdão no lugar de acusação, talvez relacional ao invés de analítica. Assim, o self aprende a interpretar seu mundo e seu ser em termos desta nova crença, ou nova linguagem, ou novo paradigma, e esta nova e encantadora interpretação age, pelo menos temporariamente, para aliviar ou diminuir o terror inerente ao coração do self alienado.

Mas com a transformação, o próprio processo de interpretação é desafiado, interpelado, minado e, finalmente, desmantelado. Com a interpretação, é dado ao self (ou sujeito) um novo modo de pensar sobre o mundo (ou objetos); mas com a transformação radical, o próprio self passa a interrogar-se, a olhar para dentro de si, a estrangular-se e, literalmente , a sufocar-se até a morte.

Colocado de uma última maneira: com a interpretação horizontal – que é de longe a dominante, a mais difundida e largamente compartilhada função da religião – o self, pelo menos temporariamente, sente-se feliz com seu entendimento, contente com sua escravidão, complacente em face do terror gritante que é, de fato, sua condição mais íntima. Com a interpretação o self torna-se sonolento no mundo, tropeça entorpecido e com a visão curta no pesadelo do samsara [3], recebe um mapa amarrado com um laço de morfina para encarar o mundo. E esta é, na verdade, a condição normal da humanidade religiosa, precisamente a condição a ser desafiada e, finalmente, desfeita pelos ativistas da transformação espiritual.

Porque a transformação autêntica não é uma questão de crença, e sim de morte do crente; não uma questão de interpretar o mundo, mas sim de transformá-lo; não uma questão de encontrar alívio, mas sim de encontrar o infinito no outro lado da morte. Não é dada importância ao self; ele é cremado.

Agora, embora obviamente eu venha favorecendo a transformação e minimizando a interpretação, o fato é que ambas as funções são incrivelmente importantes e inteiramente indispensáveis. A maioria das pessoas não nasce iluminada. Elas nascem em um mundo de pecado e sofrimento, esperança e medo, desejo e desespero. Nascem como um self ávido e pronto para contrair-se; um self prenhe de fome, sede, lágrimas e terror. E, bem cedo, aprendem várias maneiras de interpretar seu mundo, de fazer com que passe a ter sentido, de dar-lhe um significado e de defender-se do terror e da tortura que nunca estão suficientemente distantes da superfície feliz do self alienado.

E, apesar de nós, você e eu, podermos estar desejando transcender a simples interpretação e encontrar a transformação autêntica, a interpretação, por si só, é uma função absolutamente necessária e crucial na maior parte de nossas vidas. Aqueles que não conseguem interpretar adequadamente, com uma boa dose de integridade e precisão, caem rapidamente em sérias neuroses ou mesmo psicoses: o mundo pára de fazer sentido – os limites entre o self e o mundo não são transcendidos; ao contrário, começam a esfarelar-se. Não é uma descoberta importante (“breakthrough”) e sim um colapso (“breakdown”); não é transcendência, mas desastre.

Mas em algum ponto do nosso processo de amadurecimento, a própria interpretação, não importa quão adequada ou confiável, simplesmente cessa de consolar. Nenhuma nova crença, nenhum novo paradigma, nenhum novo mito, nenhuma nova idéia estancarão a angústia que se instala em nós. Aí, o único caminho que resta não é uma nova crença para o self, mas sim a transcendência do próprio self.

Mesmo assim, o número de pessoas que estão prontas para este novo caminho foi, é e sempre será muitíssimo pequeno. Para a grande maioria, algum tipo de crença religiosa aparecerá na qualidade de consolação: será uma nova interpretação horizontal que apresentará algum sentido para este mundo monstruoso. E, na maior parte do tempo, a religião tem sempre cumprido esta primeira função e se saído bem.

Assim, também uso a palavra legitimidade para descrever esta primeira função (a interpretação horizontal e a criação de significado para o self alienado). E muito da importante missão da religião é dar legitimidade ao self – legitimidade para suas crenças, seus paradigmas, suas visões de mundo, e seu caminho no mundo. Esta função da religião de prover legitimidade para o self e suas crenças – não importa quão temporária, relativa, não-transformadora ou ilusória – tem sido, todavia, a principal e mais importante função das tradições religiosas de todo o mundo. A capacidade de a religião prover significado horizontal, legitimidade e sanção para o self e suas crenças – esta função da religião, historicamente, tem sido a maior “cola social” de qualquer cultura.

E não se mexe facilmente, ou suavemente, na cola básica que mantém juntas as sociedades. Porque, na maioria das vezes, quando essa cola se dissolve, o resultado, como já dissemos, não é uma descoberta importante, mas um colapso, não libertação, mas caos social. (Voltaremos a este ponto crucial mais adiante.)

Enquanto a religião interpretativa oferece legitimidade, a religião transformadora oferece autenticidade. Para aquelas poucas pessoas que estão prontas – isto é, fartas do sofrimento do self alienado e que não mais aceitam a visão de mundo legítima – então uma abertura transformadora para a verdadeira autenticidade, para a verdadeira iluminação, para a verdadeira libertação torna-se cada vez mais premente. E, dependendo da sua capacidade para sofrer, você, mais cedo ou mais tarde, responderá à chamada para a autenticidade, para a transformação, para a libertação no horizonte perdido do infinito.

A espiritualidade transformadora não procura dar suporte ou legitimar nenhuma visão de mundo atual; ao contrário, ela provê a verdadeira autenticidade estilhaçando aquilo que o mundo considera legítimo. A consciência legítima é sancionada pelo consenso, adotada pela mentalidade de rebanho, aceita tanto pela cultura como pela contracultura, promovida pelo self alienado como o caminho para que este mundo tenha sentido. Mas a consciência autêntica sacode tudo isso de suas costas e, em substituição, fixa o olhar numa visão que vê somente um infinito radiante no coração de todas as almas e inspira em seus pulmões a atmosfera de uma eternidade muito simples de acreditar.

Assim, a espiritualidade transformadora, a espiritualidade autêntica é revolucionária. Ela não legitima o mundo; ela rompe com ele. Não consola o mundo, ela o estilhaça. E não dá importância ao self; ela o desfaz.

E esses fatos levam a diversas conclusões.

Quem Realmente Quer Transformar-se ?

Há uma crença muito difundida de que o Oriente está imerso em espiritualidade autêntica e transformadora, enquanto o Ocidente – historicamente e mesmo na “new age” atual – não apresenta nada além do que uma espiritualidade horizontal, interpretativa, meramente legítima e, portanto, morna. Ainda que haja alguma verdade nisso, a situação real é muito sombria, tanto para o Oriente quanto para o Ocidente.

Primeiro, embora seja verdade que o Oriente venha produzindo um maior número de iluminados autênticos, mesmo assim, a percentagem real da população oriental que está engajada em autêntica espiritualidade transformadora é, e sempre foi, extremamente pequena. Uma vez perguntei a Katigiri Roshi, com quem consegui minha primeira experiência de iluminação (espero não ter sido um colapso), quantos grandes mestres Ch’an (China) e Zen (Japão) verdadeiramente existiram. Sem hesitar, ele respondeu “Talvez mil no total”. Perguntei a outro mestre Zen quantos mestres Zens verdadeiramente iluminados – profundamente iluminados – estão vivos hoje, e ele respondeu “Não mais do que uma dúzia.” Vamos considerar para efeito de argumentação que essas sejam respostas não muito precisas. Vejamos os números. Mesmo que considerássemos que só existiu um bilhão de chineses ao longo da história (uma estimativa extremamente baixa), isto significa que apenas mil em um bilhão atingiram a espiritualidade autêntica, transformadora. Para aqueles sem uma calculadora, isto significa 0,000001 da população total. E isto quer dizer, com certeza, que o resto da população estava (e está) envolvido, na melhor das hipóteses, em vários tipos de religião legítima, horizontal, interpretativa: envolvido em práticas mágicas, crenças míticas, egóicas orações petitórias, rituais mágicos etc. – em outras palavras, caminhos interpretativos para dar sentido ao self alienado, uma função interpretativa que, como dissemos, é, até hoje, a maior cola social da cultura chinesa (e de todas as outras).

Então, sem querer de modo algum minimizar as excepcionalmente belas contribuições das gloriosas tradições orientais, a conclusão é simples e direta: a espiritualidade transformadora radical é extremamente rara, em qualquer tempo da história, em qualquer lugar do mundo. (Os números para o Ocidente são ainda mais deprimentes. Encerro meu caso.)

Assim, embora possamos lamentar o pequeno número de pessoas no Ocidente que estão envolvidas, hoje, num processo espiritual de transformação radical, não façamos uso do falso argumento que tenha sido dramaticamente diferente no passado ou em outras culturas. Ocasionalmente, pode ter sido um pouco melhor do que hoje no Ocidente, mas a realidade persiste: a espiritualidade autêntica é um pássaro incrivelmente raro em qualquer lugar, a qualquer tempo. Então, vamos partir do fato indiscutível que a espiritualidade autêntica, vertical, transformadora é uma das mais preciosas jóias de toda a tradição humana – exatamente porque, como todas as jóias preciosas, é incrivelmente rara.

Segundo, mesmo que você e eu acreditemos profundamente que a mais importante função que podemos exercer é oferecer espiritualidade transformadora autêntica, o fato é que o melhor que podemos fazer em nossa capacidade de trazer espiritualidade decente para o mundo é oferecer mais modos de interpretação úteis e benignos. Em outras palavras, mesmo que estejamos praticando, ou oferecendo, espiritualidade transformadora autêntica, de qualquer modo, muito do que devemos primeiramente fazer é prover para a maioria das pessoas um meio mais adequado para interpretar sua condição. Devemos começar com interpretações úteis antes que, efetivamente, possamos oferecer transformações autênticas.

A razão para isso é que se tirarmos do indivíduo (ou da cultura) muito rapidamente, muito abruptamente ou de maneira inepta a interpretação, o resultado, mais uma vez, não será conquista mas derrota, não libertação mas colapso. Deixe-me dar dois rápidos exemplos.

Quando Chogyam Trungpa Rinpoche, um importante (embora polêmico) mestre tibetano veio pela primeira vez a este país, ele ficou conhecido por sempre repetir, quando perguntado sobre o significado de Vajrayana, [4] “Há somente Ati.” Em outras palavras, há somente a mente iluminada, não importa para onde você olhe. Ego, samsara, maya e ilusão – não temos que nos livrar de nenhum deles, porque, em realidade, não existem: há somente Ati, há somente Espírito, há somente Deus, há somente Consciência não-dual em qualquer parte da existência.

Virtualmente ninguém entendeu – ninguém estava pronto para essa compreensão radical e autêntica, embora verdadeira – e, assim, Trungpa finalmente introduziu toda uma série de práticas “menores” que levavam a esta radical e definitiva “não-prática”. Ele apresentou as Nove Yanas como a base da prática – isto é, apresentou nove estágios ou níveis de prática, culminando no último – “não-prática” – do eterno-agora Ati.

Muitas dessas práticas eram simplesmente interpretativas e algumas, poderíamos dizer, “menos transformadoras”: transformações em miniatura que tornam a mente-corpo mais suscetível a atingir a completa iluminação radical. Essas práticas interpretativas e menos transformadoras levavam à “prática perfeita” da não-prática – ou à compreensão radical, instantânea e autêntica que desde o início só existe Ati. Assim, embora a transformação última fosse o objetivo primordial e sempre presente, Trungpa teve de introduzir práticas interpretativas e menores a fim de preparar as pessoas para a obviedade do que é.

Exatamente o mesmo aconteceu com Adi Da, outro influente (e igualmente polêmico) mestre (embora, desta vez, americano). Inicialmente, ele só ensinava “o caminho da compreensão”: não um modo de chegar à iluminação, mas um questionamento de por que você quer chegar à iluminação, em primeiro lugar. O próprio desejo de procurar a iluminação nada mais é do que a tendência ambiciosa do ego em si e, assim, a simples procura pela iluminação evita que ela aconteça. Portanto, a “prática perfeita” não é procurar atingir a iluminação, mas sim questionar o motivo da procura. Você obviamente a procura para evitar o presente e, no entanto, somente o presente possui a resposta: procurá-la para sempre é errar o alvo para sempre. Você já é, desde sempre, Espírito iluminado e, portanto, buscar o Espírito é simplesmente negar o Espírito. Você não pode alcançar o Espírito do mesmo modo que não pode ganhar seus pés ou adquirir seus pulmões.

Ninguém entendeu. Assim, Adi Da, exatamente como Trungpa, apresentou uma série completa de práticas interpretativas e menos transformadoras – de fato, sete estágios – levando ao ponto em que se podia abandonar a procura e abrir-se para a eterna-agora verdade da sua própria condição eterna e atemporal, que estava completa e totalmente presente desde o início, mas que era brutalmente ignorada devido ao enlouquecido desejo da busca.

Agora, qualquer que seja sua opinião sobre esses dois mestres, a realidade é a seguinte: eles realizaram talvez os dois primeiros grandes experimentos neste país de como apresentar a noção de “Há somente Ati.” – há somente Espírito – e, então, concluir que a busca do Espírito é exatamente o que não permite a sua realização. E ambos descobriram que, por mais que estejamos ligados a Ati, ligados à verdade transformadora radical deste momento, práticas interpretativas e práticas transformadoras menores são quase sempre pré-requisitos para esta última e derradeira transformação.

Meu segundo ponto, então, é que, além de oferecer transformação autêntica e radical, devemos ser sensíveis, e cuidadosos, a numerosos modos benéficos de práticas interpretativas e transformadoras menores. Portanto, esta postura mais generosa pede uma “abordagem integral” para a completa transformação, uma abordagem que aceite e incorpore muitas práticas interpretativas e menos transformadoras – cobrindo os aspectos físico, emocional, mental, cultural e comunitário do ser humano – como preparação e como expressão da suprema transformação no estado do eterno-agora.

E assim, no mesmo momento em que criticamos a religião meramente interpretativa (e todos os estados menores de transformação), devemos entender que uma abordagem integral para a espiritualidade combina o melhor do horizontal e do vertical, interpretativo e transformador, legítimo e autêntico – e, então, concentrar nossos esforços numa visão global sã e equilibrada da condição humana.

Sabedoria e Compaixão

Mas esta minha visão não é terrivelmente elitista? Santo Deus, espero que sim! Quando vai a um jogo de basquete, você quer ver Michael Jordan ou eu? Quando está interessado em música popular, quem pagaria para ouvir? Eu ou Bruce Springsteen? Quando quer boa literatura, quem preferiria passar a noite lendo? Eu ou Tolstoi? Quando você paga sessenta e quatro milhões de dólares por um quadro, será uma pintura minha ou de Van Gogh?

Toda excelência é elitista. E isto inclui também a excelência espiritual. Mas a excelência espiritual é um elitismo para o qual todos estão convidados. Vamos primeiro aos grandes mestres – Padmasambhava, Santa Teresa de Ávila, Buda Gautama, Lady Tsogyal, Emerson, Eckhart, Maimônides, Shankara, Sri Ramana Maharshi, Bodhidarma, Garab Dorje. Sua mensagem é sempre a mesma: que esta consciência que está em mim esteja em você. Você sempre começa elitista; você sempre termina igualitário.

Mas, em algum ponto do caminho, há a furiosa sabedoria que grita do fundo do coração: devemos, todos nós, prestar atenção ao radical e supremo objetivo transformador. Assim, qualquer tipo de espiritualidade autêntica ou integral também envolverá sempre um grito crítico, intenso e ocasionalmente polêmico do campo transformador para o campo meramente interpretativo.

Se usarmos as percentagens do Ch’an chinês como exemplo genérico, isto significa que se 0,000001 da população está realmente envolvida em espiritualidade autêntica ou genuína, então, 0,999999 da população está envolvida em sistemas de crenças horizontais não-transformadores, inautênticos, meramente interpretativos. E isto significa, sim, que a grande maioria dos “buscadores espirituais” deste país [5] (como de qualquer outro) está envolvida em algo muito menor que acontecimentos autênticos. Sempre foi assim e ainda o é hoje. Este país não é exceção.

Mas na América atual isto é muito mais preocupante, porque a grande maioria dos adeptos da espiritualidade horizontal freqüentemente afirma estar representando a vanguarda da transformação espiritual, o “novo paradigma” que transformará o mundo, a “grande transformação” da qual são os líderes. E, na maioria das vezes, eles absolutamente não são profundos transformadores; são meros, mas agressivos, interpretativos – não oferecem meios efetivos para desmontar completamente o self, mas simples caminhos para que o self pense de maneira diferente. Não modos de transformação, mas simplesmente novos modos de interpretação. Em realidade, o que a maioria oferece não é uma prática ou uma série de práticas; não é sadhana, ou satsang, ou shikan-taza, ou ioga. O que a maioria oferece é simplesmente a sugestão: leia meu livro sobre o novo paradigma. Isto é profundamente perturbador e profundamente preocupante.

Os buscadores espirituais autênticos dedicam-se de corpo e alma às grandes tradições transformadoras; mesmo assim, deverão sempre fazer duas coisas ao mesmo tempo: analisar e engajar-se em práticas interpretativas e menores (das quais, normalmente, depende seu sucesso), mas também dar um tonitruante grito do coração de que somente a interpretação não é suficiente.

Assim, todos aqueles que tiveram suas almas sacudidas pela transformação autêntica, acredito, devem lutar com a profunda obrigação moral e gritar do fundo do coração – talvez mansa e gentilmente, com lágrimas de relutância; talvez com agressiva paixão e furiosa sabedoria; talvez com lenta e cuidadosa análise; talvez com inquebrantável exemplo público – pois a autenticidade sempre, e absolutamente, carrega uma exigência e um dever: você deve falar claramente, com o melhor do seu talento, sacudir a árvore espiritual e jogar seus faróis nos olhos dos complacentes. Você deve deixar o entendimento radical vibrar em suas veias e sacudir os que estão a sua volta.

Ah! Se você não age, está traindo sua própria autenticidade. Está escondendo seu verdadeiro tesouro. Você não quer aborrecer os outros porque não quer aborrecer-se. Você está agindo de má-fé, o sabor de um infinito ruim.

Porque, entenda, o fato alarmante é que qualquer entendimento profundo carrega uma terrível responsabilidade: aqueles a quem é permitido ver, simultaneamente estão encilhados no dever de comunicar a visão em termos bem claros; esta é a troca. Foi-lhe permitido ver a verdade com a condição que você a comunicaria a outros (este é o sentido último do voto do bodhisattva [6] ). E, portanto, se você viu, deve falar. Fale com compaixão, fale com furiosa sabedoria, ou fale habilmente, mas fale.

E esta é, verdadeiramente, uma carga terrível, uma carga horrível, porque em nenhuma situação há lugar para timidez. O fato de que você possa estar errado não é desculpa; você pode estar certo em sua comunicação, ou pode estar errado, mas isto não importa. O que importa, como nos lembrou secamente Kierkegaard, é que somente investindo e relatando sua visão com paixão, a verdade pode penetrar, de uma maneira ou de outra, na relutância do mundo. Se você está certo ou errado, somente sua paixão forçará a descoberta. É seu dever promover esta descoberta e, portanto, é seu dever disseminar sua verdade com toda paixão e coragem que puder encontrar em seu coração. Você deve gritar como puder.

O mundo comum já está gritando, e com tal ira roufenha que as verdadeiras vozes mal podem ser ouvidas. O mundo materialista já está cheio de publicidade e fascinação, gritos de atração e brados de comércio, acenos de saudação e convites para achegar-se. Não quero ser duro aqui pois devemos honrar nossos engajamentos menores. Entretanto, você deve ter notado que a palavra “alma” é agora o item mais quente nos títulos de livros à venda, mas na maioria desses livros “alma” realmente significa ego arrastado. “Alma” vem denotando, neste frenesi alimentador de entendimento interpretativo, não o atemporal em você mas sim aquilo que se agita mais intensamente ao longo do tempo, e, assim, “cuidado com a alma” significa, incompreensivelmente, focar-se intensamente em seu ardente self alienado. Do mesmo modo, “espiritual” está na boca de todo mundo, mas normalmente o que realmente significa é qualquer intenso sentimento egóico, assim como “coração” passou a significar qualquer sentimento sincero do self.

Em verdade, tudo isso é simplesmente o mesmo antigo jogo interpretativo, de roupa nova, indo à cidade. E, mesmo assim, poderia ser aceitável se não fosse pelo fato alarmante de que esta manobra interpretativa é agressivamente denominada “transformação”, quando, obviamente, nada mais é que uma nova série de ariscas interpretações. Em outras palavras, infelizmente parece estar ocorrendo uma profunda hipocrisia oculta no jogo que considera qualquer nova interpretação como sendo uma grande transformação. E o mundo em geral, Leste ou Oeste, Norte ou Sul, está, como sempre esteve, na maioria das vezes, completamente surdo a esta calamidade.

Assim, em função da medida de sua realização autêntica, você está realmente pensando em sussurrar gentilmente no ouvido deste mundo quase surdo? Não, meu amigo, você tem que gritar. Gritar do fundo do coração o que você viu, gritar o mais que puder.

Mas não indiscriminadamente. Prossigamos cuidadosamente com o grito transformador. Que pequenos grupos de espiritualidade transformadora radical foquem seus esforços e transformem seus estudantes. E que esses grupos lentamente, cuidadosamente, responsavelmente, humildemente comecem a irradiar sua influência, adotando uma tolerância absoluta com todas as visões, mas tentando, todavia, defender uma espiritualidade verdadeira, autêntica e integral – pelo exemplo, por irradiação, por divulgação óbvia, por libertação inequívoca. Que esses grupos de transformação gentilmente convençam o mundo e seus relutantes egos, desafiem sua legitimidade, desafiem suas interpretações limitadoras e ofereçam um despertar que se contraponha ao entorpecimento que assombra o mundo em geral.

Comecemos aqui e agora – você e eu – o nosso compromisso de respirar ao infinito até que apenas o infinito seja o único estado que o mundo reconhecerá. Deixemos que a realização radical brilhe em nossas faces, ruja em nossos corações e troveje em nossos cérebros – o simples fato, o fato óbvio: você, no imediatismo da sua consciência presente, é, na realidade, o mundo inteiro, em toda sua paixão e sua indiferença, em toda sua glória e sua graça, em todas suas vitórias e suas lágrimas. Você não vê o sol, você é o sol; você não ouve a chuva, você é a chuva; você não sente a terra, você é a terra. E nesta simples, clara, inequívoca consideração, a interpretação cessará em todos os domínios, você transformar-se-á no próprio Coração do Kosmos [7] e aí, exatamente aí, muito simplesmente, muito tranqüilamente, tudo será desfeito. Então, maravilha e remorso serão estranhos a você, você e os outros ser-lhe-ão estranhos, fora e dentro não terão o menor sentido. E num óbvio choque de reconhecimento – onde meu Mestre é meu Self [8], o Self é o Kosmos e o Kosmos é minha Alma – você andará muito suavemente na bruma deste mundo e o transformará inteiramente não fazendo absolutamente nada.

E então, e então, e somente então, você – finalmente, claramente, cuidadosamente e com compaixão – escreverá na lápide de um self que nunca existiu: Há somente Ati.



[1] Wilber usa self (com “s” minúsculo) para aquilo que o filósofo Huberto Rohden denomina “ego humano” e Self (com “S” maiúsculo) para o que Rohden chama o “Eu Divino”. (N. T.)

[2] Segundo Hegel, a alienação é um processo essencial à consciência, pelo qual ao observador ingênuo o mundo parece constituído de coisas independentes umas das outras. (N. T.)

[3] A roda das reencarnações. (N. T.)

[4] Escola do Budismo Tibetano. (N. T.)

[5] Wilber refere-se aos Estados Unidos. (N. T.)

[6] Do sânscrito bodhi (iluminação) e sattva (ser). No Budismo Mahayana, o bodhisattva, um ser que, por compaixão, evita atingir o Nirvana a fim de salvar outras pessoas, é adorado como uma divindade, (N. T.)

[7] Wilber reapresenta esta palavra em seu livro Sex, Ecology, Spirituality com a seguinte observação: “Os Pitagóricos introduziram a palavra Kosmos que, normalmente, traduzimos como ‘cosmos’. Mas o significado original de Kosmos era a natureza de padrões ou de processos de todos os domínios da existência, da matéria para a matemática para o divino, e não simplesmente o universo físico, que é o significado usual das palavras ‘cosmos’ e ‘universo’ hoje... O Kosmos contém o cosmos (ou fisiosfera), bio (ou biosfera), noo (ou noosfera) e teo (teosfera ou domínio divino) ” (N. T.)

[8] Vide Nota 1. (N. T.)


FONTE: www.ariray.com.br

A Chave para a Teosofia - H. P. Blavatsky

Capítulo I - A TEOSOFIA E A SOCIEDADE TEOSÓFICA


SIGNIFICADO DO NOME

Pergunta. Muitas pessoas afirmam que a Teosofia e as suas doutrinas são uma nova religião atualmente em voga. Pode dizer-se que a Teosofia é uma religião?

Resposta. Não. A Teosofia é o Conhecimento ou Ciência Divina.


P. Qual é o verdadeiro significado do termo Teosofia?

R. “Sabedoria Divina”, qeosojla (Theosophia) ou Sabedoria dos deuses, como theogonia, genealogia dos deuses. A palavra qeo (Theo) significa um deus em Grego, um dos seres divinos, e não tem nada a ver com o termo “Deus”, tal como é entendido hoje. Não é portanto a “Sabedoria de Deus”, como já tem sido traduzido, mas sim Sabedoria Divina, ou seja, aquela que os deuses possuem.


P. Qual é a origem do nome?

R. O nome foi introduzido pelos filósofos da Escola de Alexandria, que eram chamados amigos da verdade, de phil, “amigo”, e aletheia, “verdade”. O nome Teosofia data do terceiro século da nossa era e surgiu com Ammonius Saccas e os seus discípulos (1), que criaram o sistema eclético teosófico.


P. Qual era a finalidade desse sistema?

R. Em primeiro lugar, inculcar determinadas grandes verdades morais nos seus discípulos, bem como em todos aqueles que eram “amigos da verdade”. Daí o lema adotado pela Sociedade Teosófica: “Não há religião superior à verdade.” (2) O principal objetivo dos Fundadores da Escola Teosófica Eclética era um dos três objetivos da sua sucessora atual, a Sociedade Teosófica, nomeadamente reconciliar todas as religiões, seitas e nações sob um sistema comum de ética baseado nas verdades eternas.


P. Como é que pode provar que isso não é um sonho impossível e que todas as religiões do mundo se baseiam de fato na mesma verdade única?

R. Pelo estudo comparativo e análise dessas religiões. Todos os cultos antigos apontam para a existência de uma única teosofia que lhes é anterior. A chave capaz de abrir um deles terá de abrir todos os outros; de contrário não será a chave certa. (3)


LINHA DE CONDUTA DA SOCIEDADE TEOSÓFICA

P. No tempo de Ammonius Saccas havia diversas grandes religiões antigas e eram numerosas as seitas que existiam só no Egito e na Palestina. Como conseguia ele conciliá-las?

R. Fazendo aquilo que estamos agora tentando fazer outra vez. Os neoplatônicos formavam uma escola numerosa e pertenciam a filosofias religiosas diferentes, tal como os teósofos de hoje. O judeu Aristóbulo afirmou, nesse tempo, que a ética de Aristóteles continha os ensinamentos esotéricos da Lei de Moisés; Fílon, o Judeu, tentou conciliar o Pentateuco com a filosofia pitagórica e platônica; e Josefo provou que os Essênios de Carmel não passavam de simples copistas e seguidores dos Terapeutas egípcios (os curandeiros). E assim fazemos nós hoje. Podemos mostrar como se deu a evolução de todas as religiões cristãs, incluindo as seitas mais pequenas. Estas não são mais que pequenos galhos ou rebentos dos ramos maiores; mas tanto os rebentos como os ramos nascem do mesmo tronco - a RELIGIÃO-SABEDORIA. O objectivo de Ammonius Saccas foi provar precisamente isso; Ammonius Saccas tentou levar gentios e cristãos, judeus e idólatras, a esquecerem as suas dissidências e conflitos, e a lembrarem-se apenas de que todos eles possuíam a mesma verdade, embora a formulassem de maneiras diferentes, e que todos eles eram filhos de uma mãe comum. É este também o objetivo da Teosofia.


P. Em que fontes é que se baseia para fazer tais afirmações sobre os antigos teósofos de Alexandria?

R. Em numerosos escritores conhecidos. Um deles, Mosheim, diz: Ammonius Saccas ensinou que a religião das multidões caminhava a par e passo com a filosofia e, tal como ela, fora gradualmente corrompida e obscurecida por meras vaidades, superstições e mentiras humanas; que deveria, portanto, ser expurgada dessas impurezas e interpretada segundo princípios filosóficos a fim de recuperar a sua pureza primitiva; e que a totalidade do que Cristo se referia era afinal o restabelecimento da Sabedoria dos antigos e o seu regresso à sua integridade primitiva - uma certa limitação do domínio universal da superstição - e ainda, até certo ponto, a correção e eliminação dos erros que haviam sido assimilados pelas diversas religiões populares (4).

Ou seja, precisamente aquilo que os teósofos modernos defendem. Mas enquanto o grande Amigo da Verdade era apoiado e auxiliado na sua orientação por dois Doutores da Igreja, Clemente e Atenágoras, por todos os doutos Rabinos da Sinagoga, pela Academia e pelos Sábios da Floresta (5), e ensinava uma única doutrina, nós, seus seguidores, não somos reconhecidos, sendo antes insultados e perseguidos. Por aqui se vê que há 1500 anos as pessoas eram bastante mais tolerantes do que o são neste século esclarecido.


P. Não teria Ammonius Saccas o apoio da Igreja porque, apesar das suas heresias, ensinava o Cristianismo e era um cristão?

R. De modo nenhum. Ammonius Saccas era cristão por nascimento, mas nunca aceitou o Cristianismo da Igreja. O autor acima referido disse o seguinte a seu respeito: Bastava-lhe expor os seus ensinamentos “segundo os antigos pilares de Hermes, que Platão e Pitágoras conheciam e nos quais basearam a sua filosofia”. Ao encontrar os mesmos sentimentos expressos no prólogo do Evangelho segundo S. João, Ammonius Saccas supôs, e com razão, que o objetivo de Jesus era restabelecer a grande doutrina da Sabedoria em toda a sua primitiva integridade. Considerava que as narrativas da Bíblia e as histórias dos deuses eram alegorias ilustrativas da verdade, ou fábulas que não deviam ser aceites (*).


A RELlGIÃO-SABEDORIA ESOTÉRICA EM TODOS OS TEMPOS

P. Considerando que não existem nenhum escrito de Ammonius Saccas, como é que se pode ter a certeza de que foi isso que ele ensinou?

R. Também Buda, Pitágoras, Confúcio, Orfeu, Sócrates e mesmo Jesus não deixaram nada escrito e, no entanto, são figuras históricas cujos ensinamentos sobreviveram. Os discípulos de Ammonius Saccas (entre os quais se contam Orígenes e Herênio) escreveram tratados e explicaram a sua ética. Além disso, os seus alunos - Orígenes, Plotino e Longino (conselheiro da famosa Rainha Zenóbia) - deixaram todos trabalhos volumosos acerca do Sistema dos Amigos da Verdade, pelo menos no que diz respeito àquilo que se sabe da sua profissão de fé pública, já que a sua doutrina se compunha de ensinamentos exotéricos e esotéricos.


P. Como é que esses últimos chegaram aos nossos dias, se afirmam que a chamada RELIGIÃO-SABEDORIA era esotérica?

R. A RELIGIÃO-SABEDORIA foi sempre una, e, sendo a última expressão do conhecimento humano possível, foi, portanto, cuidadosamente preservada. É muito anterior aos teósofos de Alexandria, chegou aos nossos dias e sobreviverá a todas as outras religiões e filosofias.

P. Onde e por quem é que ela foi preservada?

R. Entre os Iniciados de todos os países; entre aqueles que procuravam realmente a verdade - os seus discípulos; e nas regiões do mundo onde desde sempre se atribuiu maior valor e mais se aprofundaram essas questões: a índia, a Ásia Central e a Pérsia.


P. Pode apresentar-me provas do seu esoterismo?

R. A melhor prova que lhe posso dar é que todos os cultos religiosos, ou, melhor, filosóficos, consistiam num ensinamento esotérico ou secreto, e numa veneração exotérica (destinada ao público). Além disso, é um fato bem conhecido que os MISTÉRIOS dos antigos compreendiam em todas as nações os MISTÉRIOS maiores (secretos) e os MISTÉRIOS menores (públicos), como por exemplo as cerimônias secretas que se realizavam em Elêusis, na Grécia. Tanto Hierofantes da Samotrácia e do Egito, e os Brâmanes iniciados da índia antiga, como mais tarde os Rabinos hebreus, mantiveram secretos os verdadeiros princípios das suas doutrinas bona fide (de boa fé), com receio de que fossem profanados. Os Rabinos judeus chamavam ao seu conjunto de princípios religiosos seculares a Merkabah (corpo exterior), “veículo”, ou “a capa sob a qual se esconde a alma invisível”, ou seja, o seu mais alto conhecimento secreto. Não houve uma única nação antiga que transmitisse às massas, através dos seus sacerdotes, os seus verdadeiros segredos filosóficos, comunicando-lhes apenas a “casca”. O Budismo do Norte tem o seu “grande” veículo e o seu “pequeno” veículo, conhecidos por Escola Mahayana e Escola Hinayana. Pitágoras chamou à sua Gnose “o conhecimento das coisas que são” e reservou esse conhecimento apenas para os discípulos que conseguiam digerir esse alimento espiritual e sentir-se satisfeitos, fazendo-os jurar que guardariam silêncio e sigilo. Os alfabetos ocultistas e as cifras secretas são resultado da evolução dos antigos escritos hieráticos do Egito, cujo segredo, na Antigüidade, estava exclusivamente em poder dos Hierogramatistas, ou sacerdotes egípcios iniciados. Segundo os seus biógrafos, Ammonius Saccas fazia os seus alunos jurarem não divulgar as suas mais altas doutrinas, exceto àqueles que já haviam sido iniciados no conhecimento preliminar, que por sua vez também estavam vinculados por juramento. Aliás, não encontramos também idêntica atitude no Cristianismo primitivo, entre os Gnósticos, e mesmo nos ensinamentos de Cristo? Este falava às multidões em parábolas com um duplo sentido, explicando-as apenas aos discípulos. “A vós”, disse Cristo, “é dado conhecer o mistério do reino de Deus, mas aos que estão de fora tudo se lhes propõe em parábolas” (S. Marcos, IV, 2). “Os Essênios da Judeia e do Carmel estabeleciam uma distinção semelhante, dividindo os seus seguidores em neófitos, irmãos e perfeitos”, ou seja, os iniciados (6). Podemos encontrar exemplos disto em todos os países.


P. É possível alcançar-se a “Sabedoria Divina” apenas através do estudo?

R. Julgo que não. Os teósofos antigos, tal como os de agora, afirmaram que não é possível conhecer-se o infinito através do finito, ou seja, que o Eu finito não pode chegar ao conhecimento do infinito, mas que a essência divina pode ser comunicada ao Eu espiritual superior num estado de êxtase.


P. Como é que explica isso?

R. O verdadeiro êxtase foi definido por Plotino como sendo “a libertação do espírito da sua consciência finita e a sua identificação com o infinito”. Este estado é idêntico àquele que na índia se designa por Samadhi. Os Yoguis praticam este último mediante uma preparação física baseada na maior abstinência de comida e de bebida, e uma preparação mental que consiste num esforço permanente de purificação e de elevação do espírito. A meditação é uma oração silenciosa e sem palavras ou, como disse Platão, “um ardente voltar da alma para o divino, não para pedir um bem específico qualquer (como acontece na oração vulgar), mas pelo bem em si - o Bem Supremo universal”, do qual nós somos na terra uma parte e de cuja essência todos nós emanamos. E Platão acrescenta: “assim, guardai o silêncio na presença dos divinos, até que eles afastem as nuvens dos vossos olhos e vos façam ver com a luz que deles emana não o que vós julgais ser o bem mas aquilo que é intrinsecamente bom”. (7)


P. Portanto, a Teosofia, não é, como alguns afirmam, um sistema concebido recentemente?

R. Só os ignorantes podem se referir desse modo à Teosofia. A Teosofia é tão antiga como o mundo, tanto nos seus ensinamentos como na sua ética, senão no nome, e é também o sistema mais amplo e mais católico que existe.


P. Qual o motivo, então, por que há uma tal ignorância no que diz respeito à Teosofia entre as nações do Mundo Ocidental? Por que razão é que a Teosofia é um livro fechado para raças que são reconhecidas como as mais cultas e avançadas?

R. Na nossa opinião, existiram na antigüidade nações tão cultas e, sem dúvida, mais “avançadas” espiritualmente do que nós. Mas há várias explicações para esta ignorância voluntária. Uma delas foi dada por S. Paulo aos atenienses cultos: o fato de o verdadeiro discernimento espiritual, e até de o interesse, se ter perdido durante muitos séculos devido à sua grande dedicação às coisas dos sentidos e à sua longa escravidão à letra morta do dogma e do ritual. Mas o motivo principal é sem dúvida o fato de a verdadeira Teosofia ter sido mantida sempre secreta.


P. Já demonstrou que esse sigilo na realidade existia, mas qual é a sua verdadeira causa?

R. As causas foram: Primeiro, a perversidade e egoísmo da natureza humana dum modo geral, a sua tendência para gratificar sempre desejos pessoais em detrimento do próximo e dos familiares. Nunca se poderia confiar segredos divinos a pessoas assim. Segundo, o fato de não se poder esperar que essas mesmas pessoas impedissem que o conhecimento sagrado e divino fosse profanado. Foi esta última razão que fez também com que as verdades e os símbolos mais sublimes fossem pervertidos e que as coisas do espírito fossem gradualmente transformadas em imagens antropomórficas, concretas e grosseiras; por outras palavras, que a idéia de deus fosse diminuída e surgisse a idolatria.


TEOSOFIA NÃO É BUDISMO

P. Diz-se freqüentemente que os teósofos são “Budistas Esotéricos”. Poderá dizer-se então que são adeptos de Gautama Buda?

R. Tanto como dizer-se que os músicos são adeptos de Wagner. Alguns são budistas por religião; todavia, entre nós, há muito mais hindus e bramanistas, bem como europeus e americanos cristãos, do que budistas convertidos. Esse erro surgiu devido a uma interpretação errônea do verdadeiro significado do título da excelente obra de A. P. Sinnett, Esoteric Buddhism, cuja última palavra deveria ter sido escrita com um único “d” em vez de dois, pois nesse caso significaria aquilo que era pretendido, ou seja, “Sabedoriismo” (de Bodha, bodhi, “inteligência”, “sabedoria”) e não budismo, ou seja, a filosofia religiosa de Gautama Buda. A Teosofia, como já se disse, é a RELIGIÃO-SABEDORIA.


P. Qual a diferença que existe entre o budismo, a religião fundada pelo Príncipe de Kapilavastu, e o “Sabedo-riismo” que diz ser sinônimo de Teosofia?

R. Precisamente a mesma diferença que existe entre os ensinamentos secretos de Cristo, que são chamados “os mistérios do Reino dos Céus”, e o ritualismo e a teologia dogmática posteriores das diversas Igrejas e seitas. Buddha significa o “Iluminado” por Bodha, ou entendimento, Sabedoria. Este conceito foi integralmente assimilado nos ensinamentos esotéricos que Gautama comunicou apenas aos seus Arhats.


P. Mas alguns orientalistas afirmam que Buda nunca ensinou uma doutrina esotérica.

R. Isso é a mesma coisa que afirmar que a Natureza não tem segredos para os homens de ciência. Adiante citarei uma conversa entre Buda e o seu discípulo Ananda que desmente essa afirmação. Os ensinamentos esotéricos de Buda eram apenas o Gupta-Vidya (conhecimento secreto) dos antigos brâmanes, cuja chave os seus sucessores modernos, salvo raras exceções, perderam por completo. E este Vidya foi absorvido por aquilo que é agora conhecido por ensinamentos ocultos da escola Mahayana do Budismo do Norte. Quem o negar não passa dum simples pseudo-orientalista ignorante.


P. Mas a ética da Teosofia não é idêntica àquela que Buda ensinava?

R. Sem dúvida, porque essa ética é a alma da Religião-Sabedoria, e foi numa época patrimônio comum dos iniciados de todas as nações. Mas Buda foi a primeira pessoa a incorporar essa ética sublime nos seus ensinamentos públicos e a torná-la a pedra angular e verdadeira essência do seu sistema público. É nisto que reside a enorme diferença entre o budismo exotérico e todas as outras religiões, pois enquanto estas dão primazia ao ritual e ao dogma, o budismo insistiu desde sempre sobretudo na ética. Isto explica a semelhança, senão identidade, que existe entre a ética da Teosofia e a da religião de Buda.


P. Há grandes diferenças entre os dois sistemas?

R. Uma das grandes diferenças entre a Teosofia e o budismo exotérico é que este nega por completo a existência (a) de qualquer Divindade e (b) de qualquer vida consciente depois da morte, ou mesmo de qualquer sobrevivência da individualidade autoconsciente no homem. Isto se nos referirmos apenas aos ensinamentos públicos de Buda; mais adiante explicarei por que motivo Buda se mostrava tão reticente nessa matéria. Porém, as escolas da Igreja Budista do Norte, fundadas nos países para onde se retiraram os Arhats iniciados após a morte do Mestre, ensinam todas aquilo a que hoje se chama as doutrinas teosóficas, porque estas fazem parte do conhecimento dos iniciados. Contudo, Teosofia não é Budismo.


Notas:

(1) Também chamados Analogistas. Como explicou o Prof. Alex Wilder, F. T. S. (Membro da Sociedade Teosófica), na sua obra New Platonism and Alchemy: The Eclectic Philosophy, foram assim chamados devido ao fato de interpretarem todas as lendas e narrativas sagradas, mitos e mistérios, segundo uma regra ou princípio de analogia e correspondência, de forma que acontecimentos verificados no mundo exterior eram tomados como uma expressão de operações e experiências da alma humana. Foram também designados neoplatônicos. Embora geralmente se situe a origem da Teosofia ou do sistema eclético teosófico no séc. lV, a dar-se crédito a Diógenes Laércio, a sua origem é muito anterior, pois este atribuiu o sistema ao sacerdote egípcio Pot-Ámon, que viveu no princípio da Dinastia Ptolomáica. O mesmo autor afirma que o nome é copta e significa pessoa consagrada a Ámon, o Deus da Sabedoria. A Teosofia é o equivalente de Brahmã-Vidya, conhecimento divino.

(2) A Teosofia Eclética baseia-se em três princípios fundamentais: (1) Existência duma Divindade suprema ou essência infinita, absoluta e incompreensível, que é a origem de toda a natureza e de tudo aquilo que existe, visível e invisível. (2) Caráter imortal e eterno do homem, pois sendo uma emanação da Alma Universal a sua essência é idêntica à desta. (3) Teurgia, ou “trabalho divino”, ou aquilo que gera um trabalho de deuses, de theoi, “deuses”, e ergein, “trabalhar”. O termo é muito antigo, mas, como pertence ao vocabulário dos MISTÉRIOS, o seu uso não estava vulgarizado. Consistia numa crença mística - comprovada na prática por adeptos iniciados e sacerdotes - segundo a qual se o homem se tornasse tão puro como os seres incorpóreos, isto é, se regressasse à pureza primitiva da sua natureza, conseguiria levar os deuses a comunicarem-lhe os mistérios divinos, e mesmo por vezes a tornarem-nos visíveis, quer subjetiva quer objetivamente.

(3) Wilder, op. cit., p. 11.

(4) Wilder, op. cit., p. 5.

(5) Referência muito provável aos ermitérios dos Sannyasis (ashrams) - (N. do T.).

(6) Wilder, op. cit., pp. 8-9, 5.

(7) Wilder, op. cit., p. 7.

(8) A verdadeira Teosofia é, para os místicos, aquele estado que Apolônio de Tiana descreveu da seguinte maneira: “Vejo o presente e o futuro como se os visse num espelho límpido. O sábio não precisa de esperar pelos vapores da terra e pela corrupção do ar para prever pragas e epidemias... Os theoi, ou deuses, vêem o futuro; os homens comuns, o presente; os sábios, aquilo que está para acontecer”. A “Teosofia dos Sábios”, de que ele fala, encontra-se bem expressa na afirmação: “O Reino de Deus está dentro de nós.”


FONTE : Do Livro "A Chave da Teosofia
" de H. P. Blavatsky, Edições 70, publicado no Brasil pela Editora Teosófica com o título "A Chave para a Teosofia".

A Contradição Humana - Ricardo Lindemann

"Errarre humanum est" (Errar é humano) é um provérbio latino tão antigo que sua origem já é desconhecida; contudo, o seu conteúdo parece cada vez mais atual. Estamos já acostumados, a conviver com os erros humanos ou, em outras palavras, com as contradições dos seres humanos. Os filósofos, desde tempos imemoriais, bem como todas as religiões do mundo, falam da fraternidade e da paz; no entanto, alem das absurdas guerras entre grupos religiosos fanáticos, corre-se o risco de uma guerra atômica que exterminaria a raça humana. Avalia-se em um milhão de dólares por minuto o gasto na produção de novas armas nesse planeta, sem levar-se em consideração o custo de manutenção dos exércitos, as fortunas que nutrem o tráfico de entorpecentes e outras formas de degradação. Enquanto isso, diariamente, morrem quarenta mil crianças de problemas derivados da subnutrição no mundo em desenvolvimento; sem falar nas mortes não menos estúpidas dos suicidas dos países desenvolvidos ou das decorrentes de guerras e atos terroristas que pretendem buscar a paz e o bem estar da Humanidade através de qualquer meio. Por que falamos tanto em amor e paz e vivemos nesta violência impressionante?

Sabe-se que hoje seria possível resolver os problemas da fome, saúde e educação do gênero humano somente com os recursos há pouco citados, de forma que se torna difícil justificar tanta miséria. Entretanto, enquanto os sistemas de direita e esquerda justificam-se reciprocamente no "empilhamento" de bombas, e os terroristas ficam a justificar sua covardia com ideais de justiças, o mundo agoniza. Não é tudo isso incrivelmente contraditório?

É também conhecido o fascínio que o ser humano tem pelo poder e as mórbidas "necessidades" daí decorrentes. Talvez seja mesmo a vaidade e o anseio pelo poder que criem todo esse cruel panorama no mundo. Curiosamente, essa "necessidade" de impor a sua vontade e exercer o poder sobre os outros apresenta-se de modo geral, diretamente proporcional à incapacidade de o ser humano dorminar-se a si mesmo. Pode haver maior contradição? O ideal da filosofia platônica já era, como teria colocado Sócrates, que o homem se tornasse "senhor de si mesmo" após ter conhecido a si próprio; enquanto no Oriente, Buda, quase na mesma época, dizia que "mais glorioso não é quem vence em batalhas milhares de homens, mas sim quem a si mesmo vence".

A Sra. Rada Burnier, conhecida conferencista, Presidenta Internacional da Sociedade Teosófica, tem afirmado que: "Não se pode perguntar agora se a paz mundial é uma possibilidade, pois ela é uma absoluta necessidade. Sem fraternidade, cooperação e paz, a Humanidade pode cessar de existir".

Enquanto isso, a Ciência e a Tecnologia, lastimavelmente atreladas a interesses políticos, estão hoje a construir bombas atômicas tão poderosas que fazem daquela que destruiu Hiroshima, há quarenta anos atrás, um brinquedo para crianças. Dessa forma, torna-se fácil ver que, quanto mais poder o ser humano tiver antes de resolver a sua contradição, tanto pior será para a vida neste planeta: e a solução da contradição do homem encontra-se dentro dele mesmo e não fora. É porque o homem não é "senhor de si mesmo" que ele se torna perigoso. Seu conflito interior, sua contradição expressam-se em tudo que ele faz.

Quanto mais conhecimento e poder dermos ao homem, tanto pior será, não porque o conhecimento e o poder sejam deletérios em si, mas porque o homem, estando perturbado, em contradição devido à falta de autoconhecimento, não pode ter autodomínio. E não é um tanto quanto temerário dar-se poder a quem não possui autodomínio? Nossa civilização tem subestimado o autoconhecimento, considerando-o coisa de pouco valor prático, e os resultados são bem visíveis e práticos: estamos à mercê dos caprichos e infantilidades de seres humanos contraditórios e imaturos.

Por que homens como Sócratres e Buda, já há tanto tempo, consideravam o autoconhecimento como fundamental? Iniciemos nossa investigação analisando o problema do hábito. O que é um hábito? Para tentar responder, consideremos como funciona o cérebro. Cada pensamento, de acordo com sua característica, aciona uma corrente elétrica num circuito específico de neurônios cerebrais. Isso ativa aqueles neurônios daquele circuito. A reincidência nesse mesmo pensamento ativa os mesmos neurônios em detrimento, relativamente, da grande maioria que são os outros. Assim, a repetição da mesma corrente elétrica através do mesmo circuito de neurônios cria uma situação que favorece cada vez mais a repetição de todo processo.

Por esse motivo, o pensamento, a emoção e a ação são processos produtores de hábitos. Isso pode tornar-se bem mais evidente se nos lembrarmos de que o neurônio é uma célula viva e, portanto, particularmente mais sensível à repetição dos estímulos do que um simples circuito elétrico, que é inerte. Caso nós nos aprofundemos nessa questão, descobriremos, talvez com espanto, que características de nossa personalidade, com as quais nos identificávamos como sendo "nós mesmos", não passam de hábitos: reações "mecânicas" do nosso passado. São condicionamentos com os quais nossa consciência se identificou. Desta forma, estaremos começando a descobrir quão pouco nós conhecemos de nossa real natureza.

Um exemplo disso está no desconhecimento que costumamos ter a respeito das emoções que se manifestam em nós. Todos nós sabemos, por experiência própria, quão perturbadora é a emoção do ódio e quão harmonizante pode ser o amor, quando genuíno. Entretanto, será que todos somos conscientes da razão por que isso é assim? Recomendamos que o leitor investigue essa questão. Embora ela pareça simples, pode, sendo suficientemente aprofundada, levar-nos à própria essência do ser humano, que só pode ser conhecida de maneira direta por uma investigação atenta e profunda na consciência do próprio indivíduo.

É comum ver-se o ser humano fugir das questões que exigem profunda atenção, porque é mais fácil receber ensinamentos prontos e repeti-los como até um papagaio pode fazer; mas o autoconhecimento não pode ser fornecido por terceiros: ele só pode ser fruto de nossa própria investigação. Porem, pode ser de alguma utilidade fazer algumas considerações introdutórias sobre o tema, mas que, evidentemente, não podem jamais substituir a auto-investigação.

Pode-se observar que a pessoa humana é constituída de diversas "vontades" que, não raramente, se contradizem, por exemplo, quando estamos assistindo a uma filme ou a uma novela na televisão que nos empolga, gerando emoções que sentimos vivamente, pode surgir um conflito entre a vontade da sensação, que quer continuar assistindo ao filme, e um eventual apelo do corpo por descanso, que se manifesta por meio de uma crescente sensação de "peso" nas pálpebras. A fome, a sede etc. Podem gerar conflitos similares. Isso demonstra de maneira bastante prática que a vontade do corpo e a da sensação nem sempre coincidem, e não é raro observar as pessoas levarem seu corpo a excessos, devido a sua paixão momentânea despertada por alguma sensação.

Ora, fôssemos o corpo, nossa vontade sempre se identificaria com a vontade dele e jamais ocorreria conflitos ou excessos, pelo menos no que tange à saúde física e estaríamos, antes de mais nada, preocupados com nossa saúde física. Como costuma dizer o Eng. J. Lutzenberger, ecologista internacionalmente conhecido, se fôssemos verdadeiramente materialistas, estaríamos, antes de mais nada, preocupados com nossa saúde física e com a conservação ecológica do meio ambiente; entretanto, nossa "civilização" não tem demonstrado isso. A grande massa da Humanidade tem estado preocupada com a sensação, mesmo que isso tenha acarretado perda de saúde, acionado a ambição, causado guerras e desastres ecológicos. Se um indivíduo, ao dizer-se materialista, e assim, identificando-se com seu corpo físico, age dessa maneira, não é isso profundamente contraditório?

É curioso notar que a vontade da sensação e a emotividade, às vezes, desvia a vontade que quer concentrar a mente, como, por exemplo, quando queremos resolver um problema de matemática ou fixar a mente no trabalho que estamos tentando realizar e a emoção nos desvia, o pensar para questões afetivas, namorada, esposa, filhos etc., ou talvez ainda surja uma fome estranha justo nesse instante, e, então, a vontade do corpo começa a lutar contra a vontade que quer concentrar a mente.

Platão, no século IV a. C., já havia dividido a alma do homem em três partes eram, conforme encontramos em A República: a apetitiva (sede dos desejos de sensações e de ganhos), a arrogante ou irascível (sede da coragem e busca do poder e fama) e a inteligível (sede da razão ou compreensão e a busca da verdade). Se somarmos a isso a preguiça e busca de conflitos do corpo físico, já teremos uma noção intelectual da complexidade do homem e da grande possibilidade de conflitos e suas "vontades".

Ainda mais antigo, o Katha Upanishad da tradição hindu nos diz: "Saiba que o ser é o passageiro e o corpo, a carruagem; que o intelecto é ococheiro e a mente, as rédeas". "Os sentidos, diz o Sábio, são os cavalos, as estradas que percorrem são os labirintos do desejo".

Nessa bela alegoria oriental podemos observar que, pelo menos, o cocheiro (o intelecto - veículo do pensamento concreto - alma arrogante) e os cavalos (os sentidos - "instrumentos" das sensações - alma apetitiva) são seres que têm vida própria, ou vontade própria, independente da vontade do passageiro (o Ser - o Eu Superior - a alma inteligível, causa do pensamento abstrato).

Pode-se tentar compreender essa idéia oriental de que o pensamento e a emoção ou sensação têm vontade ou vida própria se nos lembrarmos de que o cérebro, por onde eles transitam quando estamos em consciência de vigília, é constituído de células vivas chamadas neurônios cerebrais. Até a memória tem relação com regiões do cérebro. Logo, como já vimos, cada pensamento, emoção ou ação são um estímulo que produz certa impressão nos neurônios, gerando hábitos. Essas tendências ou hábitos assim gerados fazem com que os efeitos desses pensamentos, emoções e ações permaneçam conosco como impressões (chamadas de Samskaras pelos yogues orientais) por um tempo proporcional à intensidade e ao número de reincidências dos mesmos.

Em seu comentário sobre os Yoga-Sutras de Patanjali, o tratado milenar da Raja Yoga, o doutor I. K. Taimni nos diz "que o homem comum, vivendo no mundo, está sujeito ao longo de todo o dia a todos os tipos de impactos e ele reage a esses impactos de acordo com seus hábitos, preconceitos, educação ou humor do momento, de acordo com sua natureza, como nós costumamos dizer.

Essas reações envolvem, na maioria dos casos, maiores ou menores perturbações da mente, dificilmente existindo qualquer reação que não seja acompanhada por uma agitação dos sentimentos ou da mente. A perturbação de um impacto dificilmente teve tempo de cessar antes que outro impacto tire-a do equilíbrio novamente. Às vezes, a mente dá a impressão de estar aparentemente calma, mas essa calma é apenas superficial. Sob a superficie, há uma corrente submersa de perturbação, como o marulho num mar superficialmente calmo.

Essa condição da mente, que não precisa ser necessariamente desagradável e que é tomada como natural pela maioria das pessoas, não conduz, em absoluto à unidade de propósito e, enquanto ela dura, resulta necessariamente em Vikshepa: a forte tendência da mente de estar voltada para o exterior".

É essa a razão porque parece difícil ao homem comum o autoconhecimento: a própria agitação de sua mente revolve o fundo, tornando impossível a percepção nítida das zonas mais profundas. Por isso, a Yoga busca, em primeiro lugar, serenar a mente, para que seja possível ao homem decantar as impurezas do fundo, tornando assim límpida a percepção, nas profundezas de si mesmo, da sua real natureza.

Nessa busca de serenar a mente, é indispensável a atenta observação. Pode-se descobrir que há emoções, ou estados mentais, que poderíamos classificar como pesados, em contraposição a outros mais leves que não aprisionam a nossa consciência. Tomemos como exemplo a depressão. Sabidamente ela é uma emoção pesada, porque, uma vez estabelecida, é de difícil remoção. Em quanto ela perdura, a consciência sente-se perturbada e aprisionada, porque a depressão é uma emoção que entra em dissonância com a nossa real natureza, impedindo que nosso Ser encontre possibilidade de expressar-se. Em contrapartida, quando sentimos a emoção leve da alegria, o nosso Ser consegue expressar pelo menos algo de sua natureza real e, por isso, a felicidade flui de dentro para fora sem obstáculo: a consciência sente-se livre.

Como vimos que as emoções e os pensamentos são decorrentes de hábitos, e como vimos que há estados pesados e leves, surge a idéia de transformar nossos hábitos emocionais e mentais. Essa arte de transformação dos estados psicológicos era conhecida entre os antigos como meditação e visava a libertação da consciência.

Uma das técnicas mais elementares de meditação é a da substituição. Está baseada no fato de que a mente só se ocupa com um pensamento de cada vez, de modo que a melhor maneira de se livrar de uma emoção pesada é substituí-la por uma leve. Um lama tibetano deu, certa vez, a seguinte instrução a seu discípulo:

"Nunca te permitas sentir triste ou deprimido. A depressão é má, porque contamina os outros e torna as suas vidas mais difíceis, o que não tens o direito de fazer. Portanto, sempre que ela vier a ti, rechaça-a imediatamente".

"Deves ainda controlar o teu pensamento de outro modo: não deves deixá-lo vaguear. Fixa o teu pensamento no que quer que estejas fazendo, para que possa ser feito com perfeição, não deixes tua mente ociosa, mas mantém sempre nela bons pensamentos em reserva, prontos a avançar no momento em que ela estiver livre". A linguagem simples da citação acima esconde uma série de leis que regem o mundo da mente; aconselhamos o leitor a descobri-las. Comentaremos algo sobre uma delas, que está relacionada com a expressão "rechaça-a imediatamente". Se observarmos, poderemos descobrir que as emoções nutrem-se das imagens mentais: os pensamentos. Por isso, a maneira correta de adquirir autodomínio sem acumular repressões inconscientes é dirigir a energia do pensamento para estados leves, pois assim, por falta de nutrientes, os estados pesados gradualmente perderão sua força. Isso acontece automaticamente mesmo que não estejamos conscientes do processo.

A emoção, o querer, nutre-se do pensar de maneira semelhante ao fogo. Se deixarmos cair um palito de fósforo aceso num tapete é fácil apagá-lo: basta um rápido movimento do nosso pé e o fogo estará extinto. Entretanto, se, por desatenção ou ignorância, deixa-mos passar uns poucos instantes, perderemos rapidamente o domínio da situação e em menos de cinco minutos teremos um incêndio. Muitos morreram por terem dormido com um cigarro aceso.

De maneira muito semelhante, como dizemos, é a emoção nutrida pelo pensamento. É fácil controlar qualquer estado emocional em seus momentos iniciais; entretanto, costuma ser difícil libertar a consciência de emoções pesadas depois dos poucos minutos que elas necessitam para se fortalecer e se estabelecer. Há pessoas que se deixam envolver tanto nesses estados lamentáveis de ódio, tendências suicidas, etc., que perdem completamente o controle. Diz um provérbio chinês: "Um momento de paciência pode evitar um grande desastre; um momento de impaciência pode arruinar toda a vida".

Afora o aspecto consciente da perturbação, existem os aspectos subconscientes. Diz-nos o Dr. I. K. Taimni: "Uma vez que uma perturbação tenha sido permitida, toma muito mais energia para ser superada completamente, e, mesmo que externamente ela possa desaparecer rapidamente, a perturbação interior subconsciente persiste por um longo tempo".

Pode-se acrescentar que ela tentará retornar ao plano consciente para poder nutrir-se novamente. Por isso, se nós estivermos sempre a observar vigilantes os movimentos da mente, de momento a momento, pode-se adquirir de modo gradual um domínio de nossos estados psicológicos. Faz-se isso usando a dispersão usual do pensamento a nosso favor, substituindo-os prontamente sempre que necessário.

No caso da depressão, por exemplo, quando percebemos que pensamento está querendo trilhar os labirintos dos nossos problemas sem solução à vista, e que são os que usualmente nos deprimem, chamemos prontamente à nossa atenção os nossos "bons pensamentos em reserva", substituindo, assim, os anteriores que nos conduziriam aos estados pesados. São técnicas elementares, se comparadas a outras mais avançadas, porém são eficazes e precisamos dominá-las antes de poder usar as outras comsegurança.

Outra técnica é a desidentificação ou plena atenção; esta, porém, costuma exigir uma mente já mais desperta e menos apegada às suas projeções. Para que o tema não fique muito abstrato, citaremos um exemplo que já utilizamos noutra ocasião:

"Suponhamos que nós estamos assistindo à televisão ou a um filme no cinema. O filme é real ou irreal? Supõe-se que pelo menos os adultos saibam que o filme é irreal, fictício. Mas mesmo assim sendo, pergunta-se: ele produz ou não produz emoção? Bem, somente quando nos sentimos envolvidos, identificados, não é verdade? Apesar disso, como é possível uma coisa ilusória produzir em nós um efeito tão real? Pois tal é o poder da identificação! Em verdade, todo sofrimento psicológico é fictício. Meditação é tomar consciência disso. O sofrimento físico, como ter um espinho no pé, é muito diferente, porque ele é objetivo. O espinho é objetivo; enquanto ele estiver lá, a dor não passará, mas se ele for retirado ela passará, cessada a causa, cessa o efeito. Mas o sofrimento psicológico é subjetivo. Quem cria e nutre o sofrimento psicológico? A própria mente, nada mais! Ele pode durar uma eternidade, porém ele nem mesmo precisa começar, se nós não o criarmos."

"Todo depende apenas de quão identificados estamos. Pode-se então, notar quão intenso que é o poder da identificação? Da mesma forma, quando assistimos a um programa na televisão, tendemos a nos identificar com o personagem e a torcer por ele, de modo que aquilo que agrada ou desagrada ao personagem passa a agradar ou desagradar a nós, embora essas atrações e repulsões sejam essencialmente subjetivas. Dessa forma, nós podemos ser alegres ou tristes, rir ou chorar perante uma tela de televisão mesmo quando no fundo sabemos que o filme é fictício, ilusório e transitório. A qualquer momento em que o homem lembra que ele não é o personagem , nesse momento, ele está livre. Se ele perde novamente esse estado de consciência enredar-se na ilusão e voltar a sofrer é de sua escolha, mas pode ocorrer. Por isso a verdade precisa sempre ser reencontrada de momento a momento , mas também por isso ela se apresenta sempre nova, apesar de ser um reencontro... A liberdade existe toda vez que há essa ausência de apego ao eu ou à auto-imagem que criamos, aos nossos gostos e desgostos."

Em verdade, as projeções da mente são como um pesadelo: só parecem ter realidade enquanto nós nos identificamos com elas. A técnica de substituição nos ensina que nunca devemos tentar lutar contra uma emoção, porque, ao preocuparmo-nos com ela, reforçamos o pensamento que a nutre, tornando-a ainda mais forte, mecanismo tipicamente repressivo que deve ser evitado. Antes de vermos aprender a "mudar o canal" de nossa "televisão mental" pensando noutra coisa, ou seja, em algum pensamento que nutra uma emoção leve, ou se possível, no pensamento ou ponto de vista oposto. Assim , sugere os Yoga-Sutras: "Quando a mente é perturbada por pensamentos impróprios, a constante ponderação sobre os opostos é o remédio".

Já a técnica de desidentificação ou plena atenção é muito mais profunda e libertadora porque nos permite observar e compreender o movimento da mente e do desejo. Contudo, ela exige uma mente já mais trabalhada e desapegada de suas projeções porque se a pessoa, ao observar essas projeções ou imagens, mentais, fica identificada com suas emoções, isso poderá ser perigoso, à medida que a pessoa poderá vir a reforçá-las ao invés de desidentificar-se delas. Nesse caso, precisaremos voltar à técnica de substituição para evitar qualquer risco, porque a mente ainda não está suficientemente preparada para a desidentificação.

É extremamente perigoso manipular energias sutis visando despertar poderes psíquicos por meio de práticas de Yoga ainda mais avançadas sem antes ter adquirido o completo domínio de nossos estados psicológicos, que deveria ser adquirido pelo uso perseverante de técnicas simples, eficazes e seguras, caso contrário, a pessoa poderá enveredar-se pelo caminho da auto-ilusão, despertando prematuramente energias que darão mais força aos desequilíbrios já existentes, o que será triste, inclusive, para aqueles que a cercam. Quando a pessoa está pronta, preencheu os pré-requisitos, o caminho aparece; não antes. O caminho é do autoconhecimento, e ele começa pela observação atenta dos movimentos de nossa mente de momento a momento. Assim, pela prática da meditação, a mente principia a serenar. Então, começa-se a ver o valor real de cada ser ou coisa: nossas relações com o que nos cerca.

Enquanto buscamos nosso preenchimento exteriormente, deparamo-nos com as imagens desses seres ou coisas que nossos sentidos projetam em nossa mente e costumamos atribuir a eles valores ou expectativas de preenchimento segundo nossa ótica pessoal.

Quando atribuímos a algo um valor maior que o real, nós nos frustramos, desiludimo-nos cedo ou tarde, pois, alcançando esse ser ou objeto, terminamos por descobrir que seu verdadeiro valor era menor do que pensávamos. Essa desilusão será inevitável, uma vez que ele não poderá responder ao nosso apelo, segundo nossa expectativa, porque ela ultrapassa as suas possibilidades reais de resposta. Entretanto, poderemos perder muito tempo até alcançar o valor de nossa ilusão. Então, começaremos a buscar outro alvo, pois aquele nos desiludiu. Por outro lado, podemos nos sentir inexplicavelmente vazios sem saber por que, quando, na verdade, aquilo que poderia nos preencher está muito próximo, mas nós o subestimamos, dando-lhe valor inferior ao que realmente tem. Por isso nem sequer percebemos que longe procuramos o que perto está.

Eventualmente descobrimos que toda a felicidade vem de dentro, mas alguns seres ou objetos são mais aptos do que outros para refletir o nosso interior para nós mesmos. Esses serão, para nós, os mais valiosos. Todavia, enquanto não se descobrir o valor real de cada ente que nos cerca, não poderá haver verdadeira harmonia e, por conseguinte, haverá contradição e conflito. Só quando o indivíduo consegue refletir sobre si o seu próprio Ser, conhecendo sua real natureza, é que ele consegue atribuir o valor correto. Então cessa a contradição, a harmonia se estabelece e descobre-se que a luz da felicidade nunca veio do exterior, mas sempre do interior, toda vez que nossas nuvens de desejos não a obscureceram, e que ali, ela permanece inabalável.

Na tentativa de fornecer uma visão intelectual, e, portanto limitada, dessa perspectiva correta e respeito daquilo que nos rodeia, foram elaborados os capítulos desta obra.

FONTE: Apresentamos aqui o primeiro capítulo do livro A Tradição Sabedoria - Uma Introdução à Filosofia Esotérica, de Pedro R. M. Olveira e Ricardo Lindemann.