sexta-feira, 14 de maio de 2010

Uma Espiritualidade que Transforma - Ken Wilber

Hal Blacker, editor consultivo de What is Enlightenment? (O que é Iluminação?), descreveu o tema desta edição especial da revista do seguinte modo (embora repita afirmações feitas em outras partes desta edição, vale a pena apresentar a citação completa simplesmente pela sua eloquência, franqueza e indiscutível bom senso):

Tencionamos explorar uma questão sensível, mas que precisa ser tratada: a superficialidade que permeia a maior parte do discurso e da exploração espirituais atualmente no Ocidente, e, em particular, nos Estados Unidos. Freqüentemente, ao traduzir-se doutrinas místicas do Oriente (e de outros lugares) para o idioma americano, sua profundidade é aplainada, sua exigência radical é diluída e seu potencial para transformação revolucionária é abrandado. Uma vez que as palavras dos ensinamentos são quase sempre as mesmas, isto se dá de maneira sutil. Através de uma aparente prestidigitação envolvendo, talvez, seu contexto e, consequentemente, seu significado, a mensagem das maiores doutrinas, muitas vezes, parece transmutar-se do crepitar do fogo da libertação para algo que mais se assemelha ao borbulhar calmante de um banho quente de banheira. Embora haja exceções, as implicações radicais dos grandes ensinamentos são, desse modo, freqüentemente perdidas. Desejamos investigar esta diluição da espiritualidade no Ocidente e analisar suas causas e conseqüências.

Baseado nesta declaração, gostaria de ressaltar seus pontos básicos e comentá-los da melhor maneira que puder, porque, considerados em conjunto, eles realçam o verdadeiro âmago da crise americana de espiritualidade.

Interpretação versus Transformação

Numa série de livros (e.g., Um Deus Social, Up from Eden e The Eye of Spirit) tento mostrar que a religião sempre cumpriu duas funções muito importantes, mas muito diferentes. Em primeiro lugar, ela age de modo a criar significado para o self [1] alienado [2]: oferece mitos, histórias, contos, narrativas, rituais e revivescências que, em conjunto, ajudam o self a entender e suportar as pedras e flechas do destino implacável. Normalmente, esta função da religião não necessariamente altera o nível de consciência da pessoa; não provoca transformação radical. Nem provoca, tampouco, uma libertação definitiva do self alienado. Ao contrário, ela consola o self, fortalece o self, defende o self, promove o self. À medida que o self alienado acredita nos mitos, executa os rituais, balbucia as orações ou aceita os dogmas, então crê fervorosamente que será “salvo” – ainda nesta vida, pela glória da salvação de Deus ou da proteção da Deusa, ou na vida após a morte, quando ser-lhe-á assegurada felicidade eterna.

Mas, em segundo lugar, a religião cumpre – usualmente para uma muito, mas muito pequena minoria – uma função de transformação radical e de libertação. Esta função da religião não fortalece o self alienado; ao contrário, despedaça-o completamente – não consolação mas devastação, não entrincheiramento mas esvaziamento, não complacência mas explosão, não conforto mas revolução – em síntese, não fortalecimento convencional da consciência mas transmutação e transformação radicais nas profundezas da própria consciência.

Há algumas diferentes maneiras para explicar essas duas importantes funções da religião. A primeira função – criação de significado para o self – é um tipo de movimento horizontal; a segunda função – transcendência do self – é um tipo de movimento vertical (para cima ou para o fundo, dependendo da sua metáfora). Denominei a primeira interpretação; a segunda, transformação.

A interpretação simplesmente dá ao self uma nova maneira para pensar ou sentir a realidade. O self passa a ter uma nova crença – talvez holística ao invés de atomística, talvez perdão no lugar de acusação, talvez relacional ao invés de analítica. Assim, o self aprende a interpretar seu mundo e seu ser em termos desta nova crença, ou nova linguagem, ou novo paradigma, e esta nova e encantadora interpretação age, pelo menos temporariamente, para aliviar ou diminuir o terror inerente ao coração do self alienado.

Mas com a transformação, o próprio processo de interpretação é desafiado, interpelado, minado e, finalmente, desmantelado. Com a interpretação, é dado ao self (ou sujeito) um novo modo de pensar sobre o mundo (ou objetos); mas com a transformação radical, o próprio self passa a interrogar-se, a olhar para dentro de si, a estrangular-se e, literalmente , a sufocar-se até a morte.

Colocado de uma última maneira: com a interpretação horizontal – que é de longe a dominante, a mais difundida e largamente compartilhada função da religião – o self, pelo menos temporariamente, sente-se feliz com seu entendimento, contente com sua escravidão, complacente em face do terror gritante que é, de fato, sua condição mais íntima. Com a interpretação o self torna-se sonolento no mundo, tropeça entorpecido e com a visão curta no pesadelo do samsara [3], recebe um mapa amarrado com um laço de morfina para encarar o mundo. E esta é, na verdade, a condição normal da humanidade religiosa, precisamente a condição a ser desafiada e, finalmente, desfeita pelos ativistas da transformação espiritual.

Porque a transformação autêntica não é uma questão de crença, e sim de morte do crente; não uma questão de interpretar o mundo, mas sim de transformá-lo; não uma questão de encontrar alívio, mas sim de encontrar o infinito no outro lado da morte. Não é dada importância ao self; ele é cremado.

Agora, embora obviamente eu venha favorecendo a transformação e minimizando a interpretação, o fato é que ambas as funções são incrivelmente importantes e inteiramente indispensáveis. A maioria das pessoas não nasce iluminada. Elas nascem em um mundo de pecado e sofrimento, esperança e medo, desejo e desespero. Nascem como um self ávido e pronto para contrair-se; um self prenhe de fome, sede, lágrimas e terror. E, bem cedo, aprendem várias maneiras de interpretar seu mundo, de fazer com que passe a ter sentido, de dar-lhe um significado e de defender-se do terror e da tortura que nunca estão suficientemente distantes da superfície feliz do self alienado.

E, apesar de nós, você e eu, podermos estar desejando transcender a simples interpretação e encontrar a transformação autêntica, a interpretação, por si só, é uma função absolutamente necessária e crucial na maior parte de nossas vidas. Aqueles que não conseguem interpretar adequadamente, com uma boa dose de integridade e precisão, caem rapidamente em sérias neuroses ou mesmo psicoses: o mundo pára de fazer sentido – os limites entre o self e o mundo não são transcendidos; ao contrário, começam a esfarelar-se. Não é uma descoberta importante (“breakthrough”) e sim um colapso (“breakdown”); não é transcendência, mas desastre.

Mas em algum ponto do nosso processo de amadurecimento, a própria interpretação, não importa quão adequada ou confiável, simplesmente cessa de consolar. Nenhuma nova crença, nenhum novo paradigma, nenhum novo mito, nenhuma nova idéia estancarão a angústia que se instala em nós. Aí, o único caminho que resta não é uma nova crença para o self, mas sim a transcendência do próprio self.

Mesmo assim, o número de pessoas que estão prontas para este novo caminho foi, é e sempre será muitíssimo pequeno. Para a grande maioria, algum tipo de crença religiosa aparecerá na qualidade de consolação: será uma nova interpretação horizontal que apresentará algum sentido para este mundo monstruoso. E, na maior parte do tempo, a religião tem sempre cumprido esta primeira função e se saído bem.

Assim, também uso a palavra legitimidade para descrever esta primeira função (a interpretação horizontal e a criação de significado para o self alienado). E muito da importante missão da religião é dar legitimidade ao self – legitimidade para suas crenças, seus paradigmas, suas visões de mundo, e seu caminho no mundo. Esta função da religião de prover legitimidade para o self e suas crenças – não importa quão temporária, relativa, não-transformadora ou ilusória – tem sido, todavia, a principal e mais importante função das tradições religiosas de todo o mundo. A capacidade de a religião prover significado horizontal, legitimidade e sanção para o self e suas crenças – esta função da religião, historicamente, tem sido a maior “cola social” de qualquer cultura.

E não se mexe facilmente, ou suavemente, na cola básica que mantém juntas as sociedades. Porque, na maioria das vezes, quando essa cola se dissolve, o resultado, como já dissemos, não é uma descoberta importante, mas um colapso, não libertação, mas caos social. (Voltaremos a este ponto crucial mais adiante.)

Enquanto a religião interpretativa oferece legitimidade, a religião transformadora oferece autenticidade. Para aquelas poucas pessoas que estão prontas – isto é, fartas do sofrimento do self alienado e que não mais aceitam a visão de mundo legítima – então uma abertura transformadora para a verdadeira autenticidade, para a verdadeira iluminação, para a verdadeira libertação torna-se cada vez mais premente. E, dependendo da sua capacidade para sofrer, você, mais cedo ou mais tarde, responderá à chamada para a autenticidade, para a transformação, para a libertação no horizonte perdido do infinito.

A espiritualidade transformadora não procura dar suporte ou legitimar nenhuma visão de mundo atual; ao contrário, ela provê a verdadeira autenticidade estilhaçando aquilo que o mundo considera legítimo. A consciência legítima é sancionada pelo consenso, adotada pela mentalidade de rebanho, aceita tanto pela cultura como pela contracultura, promovida pelo self alienado como o caminho para que este mundo tenha sentido. Mas a consciência autêntica sacode tudo isso de suas costas e, em substituição, fixa o olhar numa visão que vê somente um infinito radiante no coração de todas as almas e inspira em seus pulmões a atmosfera de uma eternidade muito simples de acreditar.

Assim, a espiritualidade transformadora, a espiritualidade autêntica é revolucionária. Ela não legitima o mundo; ela rompe com ele. Não consola o mundo, ela o estilhaça. E não dá importância ao self; ela o desfaz.

E esses fatos levam a diversas conclusões.

Quem Realmente Quer Transformar-se ?

Há uma crença muito difundida de que o Oriente está imerso em espiritualidade autêntica e transformadora, enquanto o Ocidente – historicamente e mesmo na “new age” atual – não apresenta nada além do que uma espiritualidade horizontal, interpretativa, meramente legítima e, portanto, morna. Ainda que haja alguma verdade nisso, a situação real é muito sombria, tanto para o Oriente quanto para o Ocidente.

Primeiro, embora seja verdade que o Oriente venha produzindo um maior número de iluminados autênticos, mesmo assim, a percentagem real da população oriental que está engajada em autêntica espiritualidade transformadora é, e sempre foi, extremamente pequena. Uma vez perguntei a Katigiri Roshi, com quem consegui minha primeira experiência de iluminação (espero não ter sido um colapso), quantos grandes mestres Ch’an (China) e Zen (Japão) verdadeiramente existiram. Sem hesitar, ele respondeu “Talvez mil no total”. Perguntei a outro mestre Zen quantos mestres Zens verdadeiramente iluminados – profundamente iluminados – estão vivos hoje, e ele respondeu “Não mais do que uma dúzia.” Vamos considerar para efeito de argumentação que essas sejam respostas não muito precisas. Vejamos os números. Mesmo que considerássemos que só existiu um bilhão de chineses ao longo da história (uma estimativa extremamente baixa), isto significa que apenas mil em um bilhão atingiram a espiritualidade autêntica, transformadora. Para aqueles sem uma calculadora, isto significa 0,000001 da população total. E isto quer dizer, com certeza, que o resto da população estava (e está) envolvido, na melhor das hipóteses, em vários tipos de religião legítima, horizontal, interpretativa: envolvido em práticas mágicas, crenças míticas, egóicas orações petitórias, rituais mágicos etc. – em outras palavras, caminhos interpretativos para dar sentido ao self alienado, uma função interpretativa que, como dissemos, é, até hoje, a maior cola social da cultura chinesa (e de todas as outras).

Então, sem querer de modo algum minimizar as excepcionalmente belas contribuições das gloriosas tradições orientais, a conclusão é simples e direta: a espiritualidade transformadora radical é extremamente rara, em qualquer tempo da história, em qualquer lugar do mundo. (Os números para o Ocidente são ainda mais deprimentes. Encerro meu caso.)

Assim, embora possamos lamentar o pequeno número de pessoas no Ocidente que estão envolvidas, hoje, num processo espiritual de transformação radical, não façamos uso do falso argumento que tenha sido dramaticamente diferente no passado ou em outras culturas. Ocasionalmente, pode ter sido um pouco melhor do que hoje no Ocidente, mas a realidade persiste: a espiritualidade autêntica é um pássaro incrivelmente raro em qualquer lugar, a qualquer tempo. Então, vamos partir do fato indiscutível que a espiritualidade autêntica, vertical, transformadora é uma das mais preciosas jóias de toda a tradição humana – exatamente porque, como todas as jóias preciosas, é incrivelmente rara.

Segundo, mesmo que você e eu acreditemos profundamente que a mais importante função que podemos exercer é oferecer espiritualidade transformadora autêntica, o fato é que o melhor que podemos fazer em nossa capacidade de trazer espiritualidade decente para o mundo é oferecer mais modos de interpretação úteis e benignos. Em outras palavras, mesmo que estejamos praticando, ou oferecendo, espiritualidade transformadora autêntica, de qualquer modo, muito do que devemos primeiramente fazer é prover para a maioria das pessoas um meio mais adequado para interpretar sua condição. Devemos começar com interpretações úteis antes que, efetivamente, possamos oferecer transformações autênticas.

A razão para isso é que se tirarmos do indivíduo (ou da cultura) muito rapidamente, muito abruptamente ou de maneira inepta a interpretação, o resultado, mais uma vez, não será conquista mas derrota, não libertação mas colapso. Deixe-me dar dois rápidos exemplos.

Quando Chogyam Trungpa Rinpoche, um importante (embora polêmico) mestre tibetano veio pela primeira vez a este país, ele ficou conhecido por sempre repetir, quando perguntado sobre o significado de Vajrayana, [4] “Há somente Ati.” Em outras palavras, há somente a mente iluminada, não importa para onde você olhe. Ego, samsara, maya e ilusão – não temos que nos livrar de nenhum deles, porque, em realidade, não existem: há somente Ati, há somente Espírito, há somente Deus, há somente Consciência não-dual em qualquer parte da existência.

Virtualmente ninguém entendeu – ninguém estava pronto para essa compreensão radical e autêntica, embora verdadeira – e, assim, Trungpa finalmente introduziu toda uma série de práticas “menores” que levavam a esta radical e definitiva “não-prática”. Ele apresentou as Nove Yanas como a base da prática – isto é, apresentou nove estágios ou níveis de prática, culminando no último – “não-prática” – do eterno-agora Ati.

Muitas dessas práticas eram simplesmente interpretativas e algumas, poderíamos dizer, “menos transformadoras”: transformações em miniatura que tornam a mente-corpo mais suscetível a atingir a completa iluminação radical. Essas práticas interpretativas e menos transformadoras levavam à “prática perfeita” da não-prática – ou à compreensão radical, instantânea e autêntica que desde o início só existe Ati. Assim, embora a transformação última fosse o objetivo primordial e sempre presente, Trungpa teve de introduzir práticas interpretativas e menores a fim de preparar as pessoas para a obviedade do que é.

Exatamente o mesmo aconteceu com Adi Da, outro influente (e igualmente polêmico) mestre (embora, desta vez, americano). Inicialmente, ele só ensinava “o caminho da compreensão”: não um modo de chegar à iluminação, mas um questionamento de por que você quer chegar à iluminação, em primeiro lugar. O próprio desejo de procurar a iluminação nada mais é do que a tendência ambiciosa do ego em si e, assim, a simples procura pela iluminação evita que ela aconteça. Portanto, a “prática perfeita” não é procurar atingir a iluminação, mas sim questionar o motivo da procura. Você obviamente a procura para evitar o presente e, no entanto, somente o presente possui a resposta: procurá-la para sempre é errar o alvo para sempre. Você já é, desde sempre, Espírito iluminado e, portanto, buscar o Espírito é simplesmente negar o Espírito. Você não pode alcançar o Espírito do mesmo modo que não pode ganhar seus pés ou adquirir seus pulmões.

Ninguém entendeu. Assim, Adi Da, exatamente como Trungpa, apresentou uma série completa de práticas interpretativas e menos transformadoras – de fato, sete estágios – levando ao ponto em que se podia abandonar a procura e abrir-se para a eterna-agora verdade da sua própria condição eterna e atemporal, que estava completa e totalmente presente desde o início, mas que era brutalmente ignorada devido ao enlouquecido desejo da busca.

Agora, qualquer que seja sua opinião sobre esses dois mestres, a realidade é a seguinte: eles realizaram talvez os dois primeiros grandes experimentos neste país de como apresentar a noção de “Há somente Ati.” – há somente Espírito – e, então, concluir que a busca do Espírito é exatamente o que não permite a sua realização. E ambos descobriram que, por mais que estejamos ligados a Ati, ligados à verdade transformadora radical deste momento, práticas interpretativas e práticas transformadoras menores são quase sempre pré-requisitos para esta última e derradeira transformação.

Meu segundo ponto, então, é que, além de oferecer transformação autêntica e radical, devemos ser sensíveis, e cuidadosos, a numerosos modos benéficos de práticas interpretativas e transformadoras menores. Portanto, esta postura mais generosa pede uma “abordagem integral” para a completa transformação, uma abordagem que aceite e incorpore muitas práticas interpretativas e menos transformadoras – cobrindo os aspectos físico, emocional, mental, cultural e comunitário do ser humano – como preparação e como expressão da suprema transformação no estado do eterno-agora.

E assim, no mesmo momento em que criticamos a religião meramente interpretativa (e todos os estados menores de transformação), devemos entender que uma abordagem integral para a espiritualidade combina o melhor do horizontal e do vertical, interpretativo e transformador, legítimo e autêntico – e, então, concentrar nossos esforços numa visão global sã e equilibrada da condição humana.

Sabedoria e Compaixão

Mas esta minha visão não é terrivelmente elitista? Santo Deus, espero que sim! Quando vai a um jogo de basquete, você quer ver Michael Jordan ou eu? Quando está interessado em música popular, quem pagaria para ouvir? Eu ou Bruce Springsteen? Quando quer boa literatura, quem preferiria passar a noite lendo? Eu ou Tolstoi? Quando você paga sessenta e quatro milhões de dólares por um quadro, será uma pintura minha ou de Van Gogh?

Toda excelência é elitista. E isto inclui também a excelência espiritual. Mas a excelência espiritual é um elitismo para o qual todos estão convidados. Vamos primeiro aos grandes mestres – Padmasambhava, Santa Teresa de Ávila, Buda Gautama, Lady Tsogyal, Emerson, Eckhart, Maimônides, Shankara, Sri Ramana Maharshi, Bodhidarma, Garab Dorje. Sua mensagem é sempre a mesma: que esta consciência que está em mim esteja em você. Você sempre começa elitista; você sempre termina igualitário.

Mas, em algum ponto do caminho, há a furiosa sabedoria que grita do fundo do coração: devemos, todos nós, prestar atenção ao radical e supremo objetivo transformador. Assim, qualquer tipo de espiritualidade autêntica ou integral também envolverá sempre um grito crítico, intenso e ocasionalmente polêmico do campo transformador para o campo meramente interpretativo.

Se usarmos as percentagens do Ch’an chinês como exemplo genérico, isto significa que se 0,000001 da população está realmente envolvida em espiritualidade autêntica ou genuína, então, 0,999999 da população está envolvida em sistemas de crenças horizontais não-transformadores, inautênticos, meramente interpretativos. E isto significa, sim, que a grande maioria dos “buscadores espirituais” deste país [5] (como de qualquer outro) está envolvida em algo muito menor que acontecimentos autênticos. Sempre foi assim e ainda o é hoje. Este país não é exceção.

Mas na América atual isto é muito mais preocupante, porque a grande maioria dos adeptos da espiritualidade horizontal freqüentemente afirma estar representando a vanguarda da transformação espiritual, o “novo paradigma” que transformará o mundo, a “grande transformação” da qual são os líderes. E, na maioria das vezes, eles absolutamente não são profundos transformadores; são meros, mas agressivos, interpretativos – não oferecem meios efetivos para desmontar completamente o self, mas simples caminhos para que o self pense de maneira diferente. Não modos de transformação, mas simplesmente novos modos de interpretação. Em realidade, o que a maioria oferece não é uma prática ou uma série de práticas; não é sadhana, ou satsang, ou shikan-taza, ou ioga. O que a maioria oferece é simplesmente a sugestão: leia meu livro sobre o novo paradigma. Isto é profundamente perturbador e profundamente preocupante.

Os buscadores espirituais autênticos dedicam-se de corpo e alma às grandes tradições transformadoras; mesmo assim, deverão sempre fazer duas coisas ao mesmo tempo: analisar e engajar-se em práticas interpretativas e menores (das quais, normalmente, depende seu sucesso), mas também dar um tonitruante grito do coração de que somente a interpretação não é suficiente.

Assim, todos aqueles que tiveram suas almas sacudidas pela transformação autêntica, acredito, devem lutar com a profunda obrigação moral e gritar do fundo do coração – talvez mansa e gentilmente, com lágrimas de relutância; talvez com agressiva paixão e furiosa sabedoria; talvez com lenta e cuidadosa análise; talvez com inquebrantável exemplo público – pois a autenticidade sempre, e absolutamente, carrega uma exigência e um dever: você deve falar claramente, com o melhor do seu talento, sacudir a árvore espiritual e jogar seus faróis nos olhos dos complacentes. Você deve deixar o entendimento radical vibrar em suas veias e sacudir os que estão a sua volta.

Ah! Se você não age, está traindo sua própria autenticidade. Está escondendo seu verdadeiro tesouro. Você não quer aborrecer os outros porque não quer aborrecer-se. Você está agindo de má-fé, o sabor de um infinito ruim.

Porque, entenda, o fato alarmante é que qualquer entendimento profundo carrega uma terrível responsabilidade: aqueles a quem é permitido ver, simultaneamente estão encilhados no dever de comunicar a visão em termos bem claros; esta é a troca. Foi-lhe permitido ver a verdade com a condição que você a comunicaria a outros (este é o sentido último do voto do bodhisattva [6] ). E, portanto, se você viu, deve falar. Fale com compaixão, fale com furiosa sabedoria, ou fale habilmente, mas fale.

E esta é, verdadeiramente, uma carga terrível, uma carga horrível, porque em nenhuma situação há lugar para timidez. O fato de que você possa estar errado não é desculpa; você pode estar certo em sua comunicação, ou pode estar errado, mas isto não importa. O que importa, como nos lembrou secamente Kierkegaard, é que somente investindo e relatando sua visão com paixão, a verdade pode penetrar, de uma maneira ou de outra, na relutância do mundo. Se você está certo ou errado, somente sua paixão forçará a descoberta. É seu dever promover esta descoberta e, portanto, é seu dever disseminar sua verdade com toda paixão e coragem que puder encontrar em seu coração. Você deve gritar como puder.

O mundo comum já está gritando, e com tal ira roufenha que as verdadeiras vozes mal podem ser ouvidas. O mundo materialista já está cheio de publicidade e fascinação, gritos de atração e brados de comércio, acenos de saudação e convites para achegar-se. Não quero ser duro aqui pois devemos honrar nossos engajamentos menores. Entretanto, você deve ter notado que a palavra “alma” é agora o item mais quente nos títulos de livros à venda, mas na maioria desses livros “alma” realmente significa ego arrastado. “Alma” vem denotando, neste frenesi alimentador de entendimento interpretativo, não o atemporal em você mas sim aquilo que se agita mais intensamente ao longo do tempo, e, assim, “cuidado com a alma” significa, incompreensivelmente, focar-se intensamente em seu ardente self alienado. Do mesmo modo, “espiritual” está na boca de todo mundo, mas normalmente o que realmente significa é qualquer intenso sentimento egóico, assim como “coração” passou a significar qualquer sentimento sincero do self.

Em verdade, tudo isso é simplesmente o mesmo antigo jogo interpretativo, de roupa nova, indo à cidade. E, mesmo assim, poderia ser aceitável se não fosse pelo fato alarmante de que esta manobra interpretativa é agressivamente denominada “transformação”, quando, obviamente, nada mais é que uma nova série de ariscas interpretações. Em outras palavras, infelizmente parece estar ocorrendo uma profunda hipocrisia oculta no jogo que considera qualquer nova interpretação como sendo uma grande transformação. E o mundo em geral, Leste ou Oeste, Norte ou Sul, está, como sempre esteve, na maioria das vezes, completamente surdo a esta calamidade.

Assim, em função da medida de sua realização autêntica, você está realmente pensando em sussurrar gentilmente no ouvido deste mundo quase surdo? Não, meu amigo, você tem que gritar. Gritar do fundo do coração o que você viu, gritar o mais que puder.

Mas não indiscriminadamente. Prossigamos cuidadosamente com o grito transformador. Que pequenos grupos de espiritualidade transformadora radical foquem seus esforços e transformem seus estudantes. E que esses grupos lentamente, cuidadosamente, responsavelmente, humildemente comecem a irradiar sua influência, adotando uma tolerância absoluta com todas as visões, mas tentando, todavia, defender uma espiritualidade verdadeira, autêntica e integral – pelo exemplo, por irradiação, por divulgação óbvia, por libertação inequívoca. Que esses grupos de transformação gentilmente convençam o mundo e seus relutantes egos, desafiem sua legitimidade, desafiem suas interpretações limitadoras e ofereçam um despertar que se contraponha ao entorpecimento que assombra o mundo em geral.

Comecemos aqui e agora – você e eu – o nosso compromisso de respirar ao infinito até que apenas o infinito seja o único estado que o mundo reconhecerá. Deixemos que a realização radical brilhe em nossas faces, ruja em nossos corações e troveje em nossos cérebros – o simples fato, o fato óbvio: você, no imediatismo da sua consciência presente, é, na realidade, o mundo inteiro, em toda sua paixão e sua indiferença, em toda sua glória e sua graça, em todas suas vitórias e suas lágrimas. Você não vê o sol, você é o sol; você não ouve a chuva, você é a chuva; você não sente a terra, você é a terra. E nesta simples, clara, inequívoca consideração, a interpretação cessará em todos os domínios, você transformar-se-á no próprio Coração do Kosmos [7] e aí, exatamente aí, muito simplesmente, muito tranqüilamente, tudo será desfeito. Então, maravilha e remorso serão estranhos a você, você e os outros ser-lhe-ão estranhos, fora e dentro não terão o menor sentido. E num óbvio choque de reconhecimento – onde meu Mestre é meu Self [8], o Self é o Kosmos e o Kosmos é minha Alma – você andará muito suavemente na bruma deste mundo e o transformará inteiramente não fazendo absolutamente nada.

E então, e então, e somente então, você – finalmente, claramente, cuidadosamente e com compaixão – escreverá na lápide de um self que nunca existiu: Há somente Ati.



[1] Wilber usa self (com “s” minúsculo) para aquilo que o filósofo Huberto Rohden denomina “ego humano” e Self (com “S” maiúsculo) para o que Rohden chama o “Eu Divino”. (N. T.)

[2] Segundo Hegel, a alienação é um processo essencial à consciência, pelo qual ao observador ingênuo o mundo parece constituído de coisas independentes umas das outras. (N. T.)

[3] A roda das reencarnações. (N. T.)

[4] Escola do Budismo Tibetano. (N. T.)

[5] Wilber refere-se aos Estados Unidos. (N. T.)

[6] Do sânscrito bodhi (iluminação) e sattva (ser). No Budismo Mahayana, o bodhisattva, um ser que, por compaixão, evita atingir o Nirvana a fim de salvar outras pessoas, é adorado como uma divindade, (N. T.)

[7] Wilber reapresenta esta palavra em seu livro Sex, Ecology, Spirituality com a seguinte observação: “Os Pitagóricos introduziram a palavra Kosmos que, normalmente, traduzimos como ‘cosmos’. Mas o significado original de Kosmos era a natureza de padrões ou de processos de todos os domínios da existência, da matéria para a matemática para o divino, e não simplesmente o universo físico, que é o significado usual das palavras ‘cosmos’ e ‘universo’ hoje... O Kosmos contém o cosmos (ou fisiosfera), bio (ou biosfera), noo (ou noosfera) e teo (teosfera ou domínio divino) ” (N. T.)

[8] Vide Nota 1. (N. T.)


FONTE: www.ariray.com.br

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