quinta-feira, 14 de maio de 2009

Os Olhos do Saber - Ken Wilber

A premissa de Eye to Eye é que existe um grande espectro da consciência humana; e isso significa que homens e mulheres possuem, à sua disposição, um espectro de diferentes níveis de saber, cada um dos quais revelando um tipo diferente de mundo (um universo diferente, com objetos diferentes, sujeitos diferentes, modos de es­paço-tempo diferentes, motivações diferentes, e assim por diante).

Colocado de um modo mais simples, existe, pelo menos, o olho da carne, o olho da mente e o olho da contemplação. Apoiar-se exclusiva ou predominantemente em um desses modos produz, por exemplo, empirismo, racionalismo e mis­ticismo.

Eye to Eye alega que cada um desses modos de saber tem seu próprio conjunto, específico e totalmente válido, de referentes: sensibilia, intelligibilia e transcendelia. Assim, todos esses três modos de saber podem ser validados com graus semelhan­tes de confiança; e, assim, todos esses três modos são tipos de conhecimento per­feitamente válidos. Conseqüentemente, qualquer tentativa de entendimento abrangente e arguto do Kosmos incluirá, com certeza, todos os três tipos de saber; e qualquer coisa menos abrangente do que isso é gravemente, gravemente suspeita quanto aos seus próprios méritos.

Uma vez que aceitamos que o Kosmos é algo totalmente grande e maravilho­so, e uma vez que admitimos que ao menos esses três tipos de saber são necessários para que se tenha uma amostra decente desse milagre da existência, então talvez possamos descobrir que alguns dos nossos problemas filosóficos mais recalcitran­tes não são tão recalcitrantes assim, afinal de contas. E isso inclui, sim, o dualismo mais exasperante de todos — o absoluto e o relativo — e seus inúmeros filhos bastardos, desde o problema mente/corpo até destino/livre-arbítrio e consciência/cérebro.

O Problema da Prova

Mas será que o conhecimento adquirido por meio desses três olhos do saber é um conhecimento válido? Como podemos confirmar ou justificar esse conhecimento? Como sabemos que não estamos enganados, confusos, ou até mesmo delirando?
Eye to Eye sugere que todo conhecimento válido (em qualquer nível e em qualquer quadrante) tem as seguintes ramificações:

1. Injunção instrumental. Isso sempre tem a forma de: “Se você quer saber isso, faça isso.”

2. Apreensão intuitiva. E uma experiência imediata do âmbito exposto pela injunção; isto é, uma experiência ou apreensão de dados direta (mesmo se os dados forem mediatos, no momento da experiência são percebidos de forma imediata). Em outras palavras, essa é a apreensão direta de dados produzidos pela injunção em questão, sejam esses dados uma experiência sensorial, mental ou espiritual.

3. Confirmação comum (ou rejeição). É uma comparação dos resultados — os dados, a evidência — com outros que tenham adequadamente completado as etapas da injunção e da apreensão.

Para ver as luas de Júpiter, é preciso um telescópio. Para entender Hamlet, é preciso aprender a ler. Para perceber a verdade do teorema de Pitágoras, é preciso aprender geometria. Em outras palavras, todas as formas válidas de conhecimento têm, como um de seus componentes importantes, uma injunção — se você quer conhecer isso, tem de fazer isso.

A etapa de injunção de todo conhecimento válido leva a uma apreensão, ou iluminação, uma revelação direta dos dados ou referentes no universo produzido pela injunção, e essa iluminação é então verificada (confirmada ou refutada) por todos os que realizam adequadamente a injunção e assim revelaram os dados.

A ciência, naturalmente, é muitas vezes tomada como o modelo de conheci­mento genuíno; e a filosofia da ciência é hoje dominada por três abordagens prin­cipais, consideradas como mutuamente excludentes: a do empirismo, Thomas Kuhn e sir Karl Popper.

O ponto forte do empirismo é a sua exigência de que todo conhecimento ge­nuíno seja fundamentado na evidência experiencial, e concordo inteiramente com essa exigência. Mas não há apenas experiência sensorial, há também experiência mental e experiência espiritual. Em outras palavras, existem dados diretos, expe­riência direta, nos campos da sensibilia, da íntelligibilía e da transcendelia. Dessa forma, se usarmos a “experiência” em seu sentido próprio de apreensão direta, poderemos então respeitar com firmeza a exigência empírica de que todo conhecimento genuíno deve ser fundamentado na experiência, nos dados, na evidência. Os empíricos, em outras palavras, estão acentuando a importância da etapa iluminadora, ou apreensiva, em todo conhecimento válido.

Mas a evidência e os dados não estão simplesmente por aí, esperando para serem percebidos por tudo e todos — e é aí que Kuhn entra em cena.

Thomas Kuhn, numa das idéias mais mal-entendidas do nosso tempo, afirmou que a ciência normal avança, da maneira mais fundamental possível, por meio do que ele chamou de paradigmas ou exemplares. Um paradigma não é só um conceito, é uma prática real, uma injunção, uma técnica tomada como exemplar para a gera­ção de dados. E Kuhn quer dizer com isso que o conhecimento científico genuíno está fundamentado em paradigmas, exemplares, injunções, os quais produzem no­vos dados. Novas injunções revelam novos dados, e por isso Kuhn afirmou as duas coisas, que a ciência é progressiva e cumulativa, e que ela apresenta certos interva­los, ou descontinuidades (novas injunções produzem novos dados). Em outras palavras, Kuhn está acentuando a importância da etapa injuntiva da busca do co­nhecimento, ou seja, os dados não estão simplesmente por aí, esperando para ser vistos, mas, em vez disso, são produzidos por injunções válidas.

O conhecimento produzido por injunções válidas é, sem dúvida, um conheci­mento genuíno precisamente porque paradigmas revelam dados, e não os inven­tam apenas. E a validade desses dados é demonstrada pelo fato de que maus dados podem ser refutados — e é aí que Popper entra em cena.

A abordagem de sir Karl Popper enfatiza a importância da refutabilidade: o conhecimento genuíno deve estar aberto à refutação, ou então ele não passa de um dogma disfarçado. Popper, em outras palavras, está acentuando a importância da etapa de confirmação/rejeição em todo conhecimento válido; e, como veremos, esse princípio de refutabilidade está em operação em todas as esferas, desde a sensibília até a intelligibilia e a transcendelia.

Desse modo, essa abordagem integral reconhece e incorpora os momentos de verdade de cada uma dessas importantes contribuições à busca humana pelo co­nhecimento (evidência, Kuhn e Popper), mas sem a necessidade de reduzir essas verdades a apenas sensibilía. O erro dos empíricos é não ver que, além da experiência sensorial, há também experiência mental e espiritual. O erro dos kuhnianos é não ver que as injunções se aplicam a todas as formas de conhecimento válido, e não só à ciência sensório-motora. E o erro dos popperianos é a tentativa de res­tringir a refutabilidade somente à sensibília, e, desse modo, fazer de “refutável por dados sensoriais” o critério para o conhecimento mental e espiritual, enquanto maus dados nessas esferas na verdade são refutáveis, mas apenas por mais dados dessas esferas, e não por dados das esferas inferiores! Os popperianos estão certos a respeito da refutabilidade, mas errados a respeito da exclusividade do sensorial.

Por exemplo, uma má interpretação de Hamlet é falsificável, não por quais­quer dados empírico-científicos, mas por outras interpretações, outros dados men­tais, gerados numa comunidade de intérpretes. Hamlet não fala da busca por um tesouro escondido no Pacífico. Essa é uma interpretação ruim, uma falsa interpre­tação, e essa refutabilidade pode ser facilmente demonstrada por uma comunida­de de pesquisadores que completaram as duas primeiras etapas (ler a peça, apreen­der seus diversos significados).

Do modo como tudo está agora, o princípio popperiano de refutabilidade tem um uso principal muito pervertido: ele se restringe implicitamente apenas à sensibilía, a qual, de uma maneira muito escondida e furtiva, impede automaticamente toda experiência mental e espiritual de atingir a posição de conhecimento genuíno. Essa res­trição sem garantia do princípio de refutabilidade alega separar o conhecimento genuíno do dogmático, quando tudo o que ela consegue, na verdade, desse jeito encolhido, é um reducionismo silencioso mas cruel, um reducionismo que não consegue se sustentar nem mesmo pelo seu próprio princípio de refutabilidade.

De outro lado, quando livramos o princípio de refutabilidade de sua restrição à sensibilia, e o liberamos para policiar também as esferas da intelligibília e da transcendelia, ele definitivamente se torna, então, um aspecto importante da busca pelo conhecimento em todas as esferas, sensorial, mental e espiritual. E, em cada uma dessas esferas, ele com certeza nos ajuda a separar o verdadeiro do falso, o demonstrável do dogmático, o confiável do espúrio.

Empregue a Injunção Espiritual

Em resumo, todas as formas válidas de conhecimento têm uma injunção, uma ilu­minação e uma confirmação; e isso é verdade tanto se estamos olhando para as luas de Júpiter, para o teorema de Pitágoras, para o significado de Hamlet ou... para a natureza do Absoluto.
E enquanto as luas de Júpiter podem ser desvendadas pelo olho da carne (pe­los sentidos ou suas extensões — sensibília), e o teorema de Pitágoras pode ser desvendado pelo olho da mente e suas apreensões interiores (intelligibilia), a natu­reza do Absoluto só pode ser desvendada pelo olho da contemplação e seus referen­tes diretamente desvendados — sua transcendelia, seus dados espirituais, os fatos reais do universo espiritual.

Mas para ganhar acesso a qualquer um desses modos válidos de saber, devo estar adequado à injunção — devo completar com sucesso a etapa injuntiva. Isso é verdade nas ciências físicas, nas ciências mentais e nas ciências espirituais. Se queremos saber isso, devemos fazer isso. E se o exemplar nas ciências físicas é um telescópio, e nas ciências humanas uma interpretação lingüística, nas ciências es­pirituais o exemplar, o paradigma, a prática é: meditação ou contemplação. Elas também têm suas injunções, suas iluminações e suas confirmações, todas perfeita­mente repetíveis, verificáveis ou refutáveis — todas constituindo, portanto, um modo perfeitamente válido de aquisição de conhecimento.

Em todos os casos, porém, temos de usar a injunção. Temos de adotar a prática exemplária, e isso certamente é verdade também para com as ciências espirituais. Se não adotarmos a prática injuntiva, não teremos um paradigma genuíno, e nun­ca vamos chegar a ver os dados do universo espiritual. Na verdade, não seremos diferentes dos sacerdotes que se recusaram a seguir a injunção de Galileu e dar uma espiada pelo telescópio.

E é aqui que começa o beco sem saída.

O Olho da Contemplação

Nas páginas seguintes, vou apresentar meu argumento de que não se pode resolver o problema do absoluto/relativo utilizando o olho da carne, ou o olho da mente. Esse mais profundo de todos os problemas e mistérios submete sua resolução somente apenas ao olho da contemplação. E, como tanto Kant quanto Nagarjuna demonstraram com veemência, se tentarmos colocar essa solução em termos inte­lectuais ou racionais, vamos gerar apenas antinômios, paradoxos, contradição.

Em outras palavras, não se pode resolver o problema do absoluto/relativo empiricamente, usando o olho da carne e sua sensibilia; nem se pode resolvê-lo racionalmente, usando o olho da mente e sua intelligibilia. A solução, em vez disso, implica a apreensão direta da transcendelia, que é desvendada apenas pelo olho da contemplação, e é completamente verificável ou refutável nessa esfera, usando o que, na verdade, são procedimentos bastante públicos — isto é, públicos para to­dos os que completaram a injunção e desvendaram a iluminação.

E o mesmo acontece, de novo, com o destino e o livre-arbítrio, o uno e o múltiplo, númeno e fenômeno, mente e cérebro. Eye to Eye argumenta que apenas nos estágios mais altos do desenvolvimento da consciência — parte essencial do desenvolvimento meditativo ou contemplativo — as soluções para esses dilemas ficam óbvias. Mas isso não é uma descoberta empírica, nem uma dedução racio­nal; é uma apreensão contemplativa.

As típicas respostas ocidentais à questão de qual é a relação entre mente e corpo — ou entre mente e cérebro —, incluem a tese da identidade (são dois aspec­tos da mesma coisa), o dualismo (são duas coisas diferentes), o interacionismo (são diferentes mas mutuamente causais), o paralelismo (duas coisas diferentes que nunca se comunicam), epifenomenalismo (uma é subproduto da outra). E a despeito do que seus adeptos afirmam, nenhuma dessas posições conseguiu levar a melhor, simplesmente porque todas elas, todas, estão cheias de imperfeições de algum tipo.

A razão pela qual todas elas são inadequadas, segundo uma filosofia mais inte­gral, seria que o problema mente/corpo não pode ser resolvido satisfatoriamente com o olho da carne nem com o olho da mente, já que esses são exatamente os dois modos que precisam ser integrados, algo que nenhuma delas poderia fazer por si mesma.

Desse modo, a única resposta aceitável à questão de qual é a relação entre a mente e o corpo é explicar com cuidado as injunções contemplativas em si — as práti­cas ou paradigmas ou exemplares contemplativos — e convidar os questionadores a experimentar a prática, e ver por si mesmos. Se você quer conhecer isso, precisa fazer isso. Ainda que nem o empirista nem o racionalista considerem essa resposta satisfatória — eles gostariam de usar somente seus próprios paradigmas e exempla­res — ainda assim essa é a única resposta e o único curso de ação tecnicamente aceitáveis

Tanto o racionalista quanto o empirista nos pressionam: eles querem que apre­sentemos nossas conclusões contemplativas e deixemos que eles as examinem con­tra suas próprias injunções. Isto é, eles querem nossas palavras despidas e divorciadas de suas próprias injunções reais e específicas. Eles querem tentar seguir nossas palavras sem a dor de ter de seguir nossos exemplares. Assim, devemos lembrá-los de que: palavras sem injunções não têm sentido.
Palavras sem injunções não têm nenhum meio de verificação. Palavras sem injunções são a substância da demago­gia, do dogma e das fraudes. Nossas palavras e nossas conclusões realmente podem ser cuidadosamente justificadas — verificadas ou rejeitadas —, mas apenas se as injunções forem empregadas.

Desse modo, então, quando os empiristas e os racionalistas exigem nossas con­clusões sem as injunções, é fatal que recebam uma resposta sem sentido — e eles nos culpam por essa falta de sentido. Nossos dados não podem ser engendrados pelos seus paradigmas e exemplares particulares, e eles, então, ficam quebrando a cabeça. Eles não farão isso, e portanto não saberão isso. Ficam girando na órbita de sua cegueira auto-imposta, e chamam essa cegueira de realidade.

Treinamento Espiritual e Dados Transcendentais

No Oriente, o zen trataria o problema do Uno e do Múltiplo da maneira que se segue. A questão pode ser, como coloca um famoso koan zen: “Se todas as coisas retornam ao Uno, a que o Uno retorna?” Esse é, naturalmente, o terrível dilema: qual é a relação entre o absoluto e o relativo, o Uno e o Múltiplo, o Vazio e a Forma?

Mas o zen, é claro, rejeitará toda resposta intelectual. Um estudante esperto pode responder: “Ao Múltiplo!”, que é uma resposta intelectual bastante boa, mas que lhe valerá apenas uma reprimenda severa do mestre. Qualquer resposta inte­lectual será radicalmente rejeitada, não importa qual o seu conteúdo!

Em vez disso, o aluno deve seguir uma injunção, um paradigma, um exemplar, uma prática, que, nesse caso, é o zazen, a meditação sentada. E — para encurtar grosseiramente uma história bastante longa e complexa —, depois de em média cinco ou seis anos desse treinamento exemplar, o estudante talvez comece a ter uma série de iluminações profundas. E você simplesmente vai ter de confiar no que eu digo — ninguém passaria por esse inferno prolongado só para ser recom­pensado com um ataque epiléptico ou uma alucinação esquizofrênica.

Não, isso é um treinamento para doutorado na esfera da transcendelia. E uma vez que esse treinamento injuntivo começa a produzir fruto, uma série de ilumina­ções — comumente chamada de kensho, ou satori — começa a brilhar na percep­ção direta e imediata, e esses dados são então verificados (confirmados ou refuta­dos) pela comunidade dos que já completaram as etapas injuntivas e iluminativas. A essa altura, a resposta à pergunta: “A que retoma o Uno?” vai ficar extrema­mente clara e fácil de compreender — e eu darei essa resposta em breve.

Mas o que importa é a verdadeira resposta à pergunta: Qual é a relação entre o Uno e o Múltiplo, o absoluto e o relativo, o livre-arbítrio e o destino, a consciência e a forma, a mente e o corpo? — a resposta tecnicamente correta e precisa é: satori. A resposta tecnicamente correta é: pratique a injunção, faça a experiência, junte os dados (as experiências) e verifique-os com uma comunidade dos igual­mente adequados.

Não podemos afirmar que a resposta é outra que não essa porque, se o fizésse­mos, teríamos apenas palavras, sem injunções, e elas seriam completamente sem sentido. É como fazer um bolo: você segue a receita (as injunções), assa o bolo, e então, no final, você o prova. Para a pergunta: “Que sabor tem o bolo?”, só pode­mos dar a receita, e então deixar que a pessoa o faça e prove por si mesma. Não podemos descrever a resposta, teórica, verbal, filosófica ou racionalmente, de ne­nhuma outra forma satisfatória: se você quer saber isso, você deve fazer isso.

Portanto: siga a injunção, ou o paradigma, da meditação; pratique e aperfei­çoe esse instrumento cognitivo até a percepção aprender a discernir os fenômenos incrivelmente sutis da transcendelia; verifique suas observações com outros que também o tenham feito como fazem os matemáticos, que verificam suas provas com outros que completaram as injunções; e, dessa forma, confirme ou rejeite os resultados. E, na verificação dessa transcendelia, a relação entre o Uno e o Múlti­plo se tornará aparente — pelo menos tão aparente quanto as pedras o são aos olhos da carne, e a geometria o é aos olhos da mente — e, assim, o mais intratável de todos os dualismos vai literalmente se desmanchar

A resposta para a relação entre o Absoluto e o relativo, portanto, definitiva­mente não é: o Absoluto criou o mundo. Definitivamente não é: o mundo é ilusó­rio, e só o Absoluto é real. Não é: percebemos somente a reflexão fenomênica de uma realidade numênica. Não é: destino e livre-arbítrio são dois aspectos do mes­mo processo. Não é: todas as coisas e todos os acontecimentos são diferentes aspectos de uma única teia da vida entrelaçada. Não é: só o corpo é real; a mente é uma reflexão dessa realidade única. Não é: mente e corpo são dois aspectos diferentes do organismo como um todo. Não é: a mente emerge da estrutura hierárquica do cérebro. Na verdade, nem mesmo é: númeno e fenômeno são unos e não duais.

Todos esses são meros símbolos intelectuais, que têm como propósito dar uma resposta, mas a resposta verdadeira não está na sensibilia ou intelligibilia, ela está na transcendelia, e essa esfera só se revela depois que se emprega um exemplar medita­tivo, no qual se vê cada uma dessas respostas intelectuais como completamente inadequadas e totalmente insatisfatórias; cada uma apenas cria mais dificuldades insuperáveis e impossíveis de serem resolvidas, e dilemas absurdos, e contradições escandalosas. A resposta não é mais conversa; a resposta é satori, seja qual for o nome que queiramos usar para transmitir a idéia de percepção contemplativa legí­tima.
E, indo mais diretamente ao problema, ainda que essa resposta pudesse ser - colocada em palavras — e, na verdade, a resposta definitivamente pode ser colo­cada em palavras, porque mestres zen falam a respeito o tempo todo — ainda assim, não faria sentido nenhum para alguém que não tivesse também praticado a injunção, do mesmo modo como símbolos matemáticos podem ser vistos por todo mundo, mas são compreendidos somente por aqueles que completaram o treina­mento.

Mas abra o olho da contemplação, e a resposta fica tão óbvia, tão perfeita, tão inconfundível quanto o reflexo da luz do Sol numa lagoa cristalina, cedinho, numa fria manhã de primavera.
Você viu? Essa era a resposta.

Conclusão

Vimos que a tradição ocidental tem sido atormentada, desde seus primórdios, por uma série de dualismos brutais, e que virtualmente todas as formas de filosofia ocidental, até os dias de hoje, se apóiam afinal em um ou outro desses dualismos (mente/corpo, verdade/aparência, númeno/fenômeno, transcendência/imanência, significado/significante, consciência/cérebro).
Mas esses dualismos, e as questões essenciais que os circundam, não podem, afinal, ser resolvidos pelo olho da carne e seu empirismo, nem pelo olho da mente e seu racionalismo, mas somente pelo olho da contemplação e seu misticismo radi­cal e experiencial (satori qualquer que seja o nome que se dê).

No Ocidente, desde Kant, a metafísica não goza de muito boa reputação. Afir­mo que isso aconteceu precisamente porque ela tentou fazer com o olho da mente o que só pode ser feito com o olho da contemplação. Como a mente não conseguiu dar conta do recado metafísico e, ainda assim, continuou clamando em alta voz que podia, era mais do que óbvio que, mais cedo ou mais tarde, alguém ia levantar a lebre e exigir uma evidência de verdade. Kant fez a exigência, e a metafísica entrou em colapso — merecidamente, como era de se esperar.

Nem o empirismo, nem a razão pura, nem a razão prática, nem qualquer com­binação delas pode ver o que está por dentro da esfera do Espírito (e da “verdadei­ra metafísica”). Das ruínas fumegantes que Kant deixou para trás, a única conclu­são possível é que toda a metafísica futura, para ser genuína, deverá oferecer evi­dência e dados diretos e experienciais da própria esfera espiritual. E isso significa que, além da experiência sensorial e seu empirismo (científico e pragmático), e da experiência mental e seu racionalismo (puro e prático), deve-se adicionar a expe­riência espiritual seu misticismo (prática espiritual e seus dados experienciais).

A possibilidade de experiência direta da sensíbilia, da intelígibilia e da transcendelia desarma de forma radical as objeções kantianas e coloca a busca pelo conhecimento firmemente no caminho da evidência, com cada um de seus atesta­dos de validade (verdade, veracidade, imparcialidade e encaixe funcional), guiado pelas três etapas da genuína acumulação de conhecimento (injunção, apreensão, confirmação) em cada nível (sensorial, mental, espiritual — cruzando o espectro inteiro da consciência, não importa quantos níveis queiramos invocar).

Resumindo, as três etapas da genuína acumulação de conhecimento funcio­nam para todos os níveis, em cada quadrante. A aplicação das três etapas (com sua exigência inerente de exemplares, evidência e refutabilidade) de fato nos aju­da em nossa busca de separar o trigo do joio, o verdadeiro do falso, o demonstrável do dogmático, o confiável do espúrio. Guiados pelas três etapas, os atestados de validade de cada um dos quadrantes podem realmente ser resgatados. Eles têm valor à vista. E a moeda é a evidência experiencial, sensorial, mental e espiritual. Com essa abordagem, a metafísica recupera sua autoridade própria, que não é nem sensorial, nem mental, mas contemplativa. Com o olho do Espírito, pode-se ver a Deus. Com o olho do Espírito, o universo revela seus contornos mais interio­res. Com o olho do Espírito, o númeno anuncia sua Presença pura. Com o olho do Espírito, o Kosmos entrega seus segredos mais profundos. E com o olho do Espíri­to, os pesadelos terríveis dos dilemas sensoriais e mentais se submetem ao esplendor do Vazio em si.

A filosofia integral não pode substituir nenhum dos outros modos ou funções do saber — não pode substituir a ciência empírica, nem a meditação contemplativa, nem mesmo os outros modos mentais, da literatura à poesia, história, psicanálise, matemática e lingüística.

Mas a filosofia integral está aí, bem no coração do mundo mental, coordenan­do e elucidando todos esses modos de saber, dimensões de valor, níveis do ser. A filosofia integral em si pertence à esfera mental, e não pode, por si mesma, apenas com seus dispositivos mentais, sair fora dessa esfera. Mas pode reconhecer com firmeza o papel da contemplação na geração de dados, e leva esses dados em con­sideração em suas próprias atividades coordenadoras e elucidativas. Se por si mes­ma não produz dados meditativos, ela reconhece firmemente a existência e a im­portância desses dados. É razão mandálica em sua maior e mais sutil abrangência. Conhece a diferença entre verdade relativa, que pode divulgar, e verdade absolu­ta, pela qual deve se submeter ao olho da contemplação.

A filosofia integral, assim, coordena mentalmente o Bem, o Verdadeiro e o Belo, tecendo uma mandala das muitas faces do Espírito, convidando-nos então a adotar a prática espiritual em si, e assim finalmente encontrar o Espírito cara a cara.

FONTE: Excerto do Capítulo III (A Filosofia Integral e a Busca do Real) do livro “O Olho do Espírito”, de Ken Wilber, filósofo norte-americano criador da Filosofia Integral, publicado no Brasil pela Editora Cultrix, em 2001. Neste livro, o autor busca através de uma abordagem integrativa tecer os vários fragmentos do conhecimento humano numa coerente e inspiradora visão de mundo .

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